São Paulo, Sábado, 03 de Julho de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

O país virtual e o país real

PAUL SINGER

A recuperação da economia está nas manchetes. Mas convém observar que, por enquanto, tudo o que aconteceu foi uma inversão das expectativas, uma melhora radical das projeções sobre o desempenho da economia brasileira neste ano. Após o derretimento do real, em janeiro último, os analistas projetavam uma desvalorização selvagem da moeda, uma inflação grande, que obrigaria a autoridade monetária a manter a taxa de juros nas nuvens; consequentemente, a recessão faria o PIB tombar uns 4% ou 5%.
De março para cá, as projeções mudaram: a desvalorização do real será tão moderada quanto quiser nosso Banco Central; daí se segue que a inflação será muito menor do que se temia, de modo que o Banco Central também readquiriu certo poder de arbitrar a taxa de juros, que já está sendo diminuída em ritmo encorajador.
Mas a economia real está longe de ter sofrido uma inversão tão radical. O máximo que se pode dizer é que, no primeiro trimestre de 1999, o nível de atividade parou de declinar. O "crescimento" em relação ao quarto trimestre do ano anterior deve-se inteiramente à agricultura, cujos preços foram beneficiados pela desvalorização do real. O Brasil real continua mergulhado na recessão, e a única novidade é que a recessão parou de se aprofundar. O retorno ao crescimento é, por enquanto, uma perspectiva, um brilho no olho interessado do observador.
Uma das características da hegemonia financeira no capitalismo de hoje é a pequena capacidade de distinguir entre o país virtual das projeções e o país real da produção, do consumo e do emprego. No mundo das finanças, a visão do que será domina e determina o que é. O valor dos ativos -ações, títulos de dívida, contratos de opções etc.- depende, a cada momento, do que os especuladores pensam a respeito do futuro. Esse jogo de virtualidades está sendo inconscientemente confundido com o que acontece no campo econômico e social.
Mas nem sempre o país virtual é uma antecipação do país real. As projeções pessimistas sobre o Brasil, no começo do ano, tinham por pressuposto que os capitais externos continuariam boicotando o país, como vinham fazendo desde a moratória russa, em agosto de 1998. Mas, contrariando o que todos esperavam, esses capitais retornaram ao Brasil a partir de meados de março último e em quantidades crescentes, apesar dos sucessivos cortes de juros, que obviamente reduzem a lucratividade das aplicações financeiras no país.
Graças a esse retorno, o real pode ser revalorizado; consequentemente, a pressão inflacionária diminuiu, o que permitiu ao Banco Central implementar meia dúzia de cortes da taxa básica de juros em dois meses. Isso nada teve a ver com a política econômica do governo nem com uma pretendida "solidez" da economia brasileira. Nós não repetimos (por enquanto) a regressão econômica ocorrida no México, na Indonésia e na Rússia apenas porque ao Brasil os capitais globalizados voltaram mais cedo, aliás muito mais cedo do que todos esperavam.
A questão toda está na interpretação desse retorno imprevisto. Os "fundamentalistas do mercado" (como os chama Soros) insistem em que os mercados são sempre racionais e refletem os "fundamentos", que no caso do Brasil não tiveram nenhuma melhoria entre a primeira e a segunda quinzena de março. Na realidade, os mercados financeiros nunca foram mais irracionais do que nestes tempos de crises internacionais intermitentes.
No ano passado, após a reeleição do presidente, os governos do G-7, o FMI, o Banco Mundial e o BID juntaram forças para trazer os capitais globalizados de volta ao Brasil; nem mesmo um pacote de US$ 41,5 bilhões surtiu efeito. A fuga de capitais jamais cessou e em dezembro de 1998 tornou-se irresistível, impondo a desvalorização do câmbio no início de janeiro. Dois meses depois, quando a fuga de capitais parecia a todos os analistas irreversível, ela mudou de rumo e passou a jorrar para dentro do país.
O país virtual das finanças globalizadas está sujeito a forças misteriosas, cujos humores sofrem mudanças imprevisíveis. Neste momento, a mudança nos é favorável e uma onda de otimismo inunda o país. Mas até quando? O que está dentro de nossa competência de nação soberana é manter ou não a economia dependente de tais humores. Podemos livrar a economia brasileira dessa dependência e lhe dar rumos próprios, de acordo com os interesses da maioria dos que residem e trabalham no país. Ou podemos continuar a crer nos fundamentos do mercado, festejando os momentos em que, em seus desígnios imperscrutáveis, ele nos favorece.


Paul Singer, 64, economista, é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Foi secretário municipal do Planejamento de São Paulo (gestão Luiza Erundina).

O colunista Aloysio Biondi está em férias


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