São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002

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LUÍS NASSIF

As orações do Brasil

O tempo acaba sufocando muitas lembranças da infância. Uma delas foi a religiosidade católico-mineira, tão presente naquelas fraldas da Mantiqueira por onde se chegava subindo a montanha e, depois, entrando na boca do vulcão, da minha Poços de Caldas.
Hoje em dia tornei-me cidadão contemporâneo, amarrado ao ritmo da vida moderna, à neurose das grandes cidades, escravo do tempo e dos prazos. Mas meus mortos e minhas lembranças sempre renascem uma vez por ano, quando o país se recolhe e celebra Todos os Santos e Finados.
Cresci em ambiente católico, fiz a primeira comunhão, e fui escolhido, com uma coleguinha francesa, para compor o casal que receberia a hóstia consagrada na frente do altar, em nome do grupo da irmã Terezinha, a irmãzinha leiga que nos preparou para o mais belo dos sacramentos. Admito que nos ensaios engasguei com a hóstia e a tirei do céu da boca com minhas mãos ímpias, ainda bem que não-consagrada, caso contrário jorraria o sangue de Jesus crucificado.
Depois, fui cruzado mariano, apóstolo, fiz as treze sextas-feiras e quase completei os cinco sábados. Usava escapulário e ágnus-dei, ambos garantindo a salvação eterna e o aviso da morte, um dia antes, comunicado diretamente por Nossa Senhora.
O escapulário é um saquinho de pano, com cordão para pendurar no pescoço. Dentro, tem bordados o coração de Jesus e o de Maria. Já o ágnus-dei é uma medalhinha benta, que se prega na roupa com alfinete. Aberta, mostra lado a lado os corações de Jesus e de Maria.
Se esses símbolos impressionavam, assim como o brasão dos cruzados, as músicas não ficavam atrás. "Jesus Cristo está realmente/ de dia, de noite, presente no altar/ esperando que cheguem as almas/ ansiosas, silentes, para o visitar", era nosso hit.
Havia as músicas de procissão, algumas muito chatas, como o "queremos Deus/homens ingratos/ao pai supremo, ao redentor" e muitas em latim. E havia as orações das missas, algumas épicas, de arrepiar, como o trecho que fala em "santo, santo, santo/é o senhor Deus dos exércitos/hosana nas alturas/bem vindo os que vêm em nome do senhor".
As orações para crianças eram particularmente encantadoras. Nem sei se foram preservadas para as novas gerações católicas. Para dormir, podia-se escolher entre duas clássicas, ambas dedicadas ao anjo da guarda. A minha preferida era: "Santo anjo do senhor/meu zeloso guardador/se a ti me confiou a piedade divina/que me guarde, que me rege/me governe e me ilumine". Havia outra, muito popular, mas que considerava meio bobinha para os meus dez anos: "Com Deus me deito/com Deus me levanto/na graça de Deus/do divino Espírito Santo/para anjo da guarda que me guarde/São José rogai por mim/agora e na hora de minha morte, amém".
Havia uma oração especial na família, o "Salmo 90", oração de proteção. Carlos Lacerda morreu com um salmo 90 na carteira, provavelmente o mesmo com que foi presenteado por minha avó Martha, escrito com sua letrinha graciosa. Logo após o atentado da rua Toneleros, Lacerda ligou para o vô Issa garantindo que o salmo 90 havia salvo a sua vida. Quando comecei na profissão, a primeira providência da vó Martha foi escrever o salmo 90, que eu trazia na carteira comigo.
E havia as orações clássicas: "Ave Maria", que não me comovia muito, "Pai Nosso", que a gente falava antes "padre nosso", o "Credo", que era mais um exercício de memória do que de emoção. E o "Salve Rainha". E aí, meu amigo, era como se a gente fosse transportado para os umbrais do tempo, para o início das religiões, para os mistérios divinos. "Salve Rainha, mãe de misericórdia/a vida, doçura, esperança nossa, salve/a vós bradamos os degradados filhos de Eva/a vós suspiramos, gemendo e chorando, nesse vale de lágrimas."

E-mail - LNassif@uol.com.br

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