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OPINIÃO ECONÔMICA
Remédio para a ganância
RUBENS RICUPERO
Será que os gigantes farmacêuticos estrangulam a concorrência dos remédios genéricos
mediante expedientes discutíveis?
Não é, como parece, referência à
disputa de José Serra com os peso-pesados da indústria farmacêutica no Brasil. Refiro-me aos Estados Unidos, onde a Federal Trade
Commission (FTC) abriu em 11
de outubro de 2000 inquérito com
esse fim.
A comissão investiga sobretudo
se houve conspiração para retardar o lançamento de remédios genéricos que barateariam o preço
dos medicamentos. A suspeita foi
comprovada em dois processos
movidos pela FTC contra os laboratórios Abbott e Aventis por terem pago a concorrentes a fim de
que estes não lançassem genéricos. Investigação similar está em
curso para saber se a firma Bristol-Myers-Squibb buscou impedir
o ingresso no mercado de remédio
para competir com seu medicamento contra o câncer vendido
sob a marca Taxol.
No primeiro caso, verificou-se
que a Abbott tinha concordado
em pagar à Geneva Pharmaceuticals US$ 4,5 milhões por mês, desde que a "concorrente" não liberasse a versão genérica do Hytrin,
contra a pressão alta. O acusado
alegou a legalidade da prática,
mas liquidou a pendência em troca do compromisso de não mais
promover conchavos do tipo.
No segundo exemplo, a Aventis
foi acusada de ter pago à Andrx
Pharmaceuticals US$ 90 milhões
para suspender a introdução de
versão genérica do remédio cardíaco Cardizem-CD.
De acordo com o então presidente da FTC, Robert Pitofsky,
marcas de medicamentos com
vendas nos EUA de US$ 20 bilhões anuais cairão no domínio
público ao longo dos cinco próximos anos. É isso que espicaça a
agressividade das grandes empresas no intuito de prolongar a vida
de suas patentes. O que às vezes
fazem mediante o artifício de requerer patente para produto supostamente novo, mas que não
passa de alteração cosmética do
anterior.
A comissão examina também
os efeitos de lei aprovada em 1984
para estimular a competição entre genéricos e remédios de marca, mas que contribuiu para a
proliferação de processos. Com
efeito, a lei estipulou que, se houvesse contestação judiciária, a
Food and Drug Administration
(FDA) não poderia outorgar licença para a fabricação de genéricos dentro do prazo de 30 meses
contados a partir do início do
processo. Por meio da chicana judiciária, amplia-se, portanto, o
prazo da patente.
Espera-se para este ano tentativa de reformar a lei de patentes,
com vistas a facilitar a concorrência dos genéricos. Da mesma forma, é possível que se renove o projeto de lei para autorizar importações de remédios mais baratos
do exterior. Versão anterior do
projeto foi vetada por Clinton por
ser impraticável, mas os esforços
prosseguem.
Como se vê, os problemas nos
EUA não são diferentes dos enfrentados no Brasil. Pareceria paradoxal, assim, que as autoridades americanas queiram abrir na
Organização Mundial de Comércio processo contra dispositivos
da lei brasileira muito similares
aos que estão sendo discutidos em
Washington.
É inegável que sempre existirá
tensão entre dois objetivos desejáveis: a recompensa ao inventor
pelos gastos e mérito do trabalho,
de um lado, e o interesse público
de estimular concorrência para
fazer baixar o preço dos remédios,
do outro. A patente é a forma de
outorgar ao inventor o reconhecimento a que faz jus pela inovação. Mas a patente é algo de excepcional, um monopólio legal
que se concede a alguém para
usufruir exclusivamente de uma
invenção. Trata-se de exceção
maior à regra do capitalismo, que
é a concorrência. Como toda exceção, deve ser estritamente limitada por um período de tempo e
não pode ser absoluta, para não
levar a abuso.
No passado, prejudicava-se o
inventor devido à precariedade
da proteção. Entidades poderosas
como a Pharmaceuticals Manufacturers Association (PMA), dos
EUA, mobilizaram-se e, graças a
apoio no Congresso, convenceram o governo americano a dar
prioridade à questão na Rodada
Uruguai, contra a opinião de especialistas comerciais, que só enxergavam vínculos indiretos entre a propriedade intelectual e o
comércio. Existia, além disso, organização especializada na área,
a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi), que
a indústria acusava de não ter
"dentes", isto é, sanções efetivas.
O fato é que o poder dos americanos, europeus, nipônicos, o argumento de que em nossos dias custa US$ 200 milhões ou US$ 300
milhões para desenvolver remédio novo, as pressões para a conclusão da Rodada acabaram por
fazer engolir o acordo de Trips.
Empurrou-se o pêndulo de um
extremo ao outro e, a cada dia
que passa, constatam-se as deploráveis consequências: ameaça à
sobrevivência da indústria farmacêutica nacional nos países
mais pobres, obstáculos ao uso de
genéricos para moderar preços,
aumento do pagamento de "royalties", custo exorbitante do tratamento de Aids nas nações subdesenvolvidas, as mais afetadas,
falta de interesse dos laboratórios
em pesquisar a cura das doenças
tropicais, pois os miseráveis não
têm com que pagar os medicamentos.
O pior é que a aliança dos gigantes farmacêuticos com os governos poderosos tenta ampliar
ainda mais esses direitos exagerados na Alca e outros foros. Se continuar desse modo, não é preciso
ser profeta para prever a violência
da contra-reação, já presente nas
manifestações de rua e no debate
sobre implementação da Rodada
Uruguai na OMC. O conflito não
é do interesse de ninguém. É hora
de que países como o Brasil e os
EUA, grandes laboratórios e produtores de genéricos, assim como
consumidores, busquem solução
de equilíbrio que concilie em nível
razoável os objetivos em colisão.
Mas essa compatibilização não
poderá ser feita na base de maximizar os lucros e absolutizar o
monopólio da patente. O bem comum terá de moderar o impulso
do capitalismo globalizado de
buscar rentabilidade cada vez
maior a fim de agradar aos mercados. Tal comportamento não
deixa de ser doença, para a qual
também é preciso descobrir cura.
Para encontrá-la, basta atentar
nas palavras do padre Antonio
Vieira, quando afirma que o remédio para a ganância não é aumentar a fazenda, mas reduzir a
cobiça.
Rubens Ricupero, 63, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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