São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

Morte e transfiguração

RUBENS RICUPERO

"Jesus foi de fato um profeta muito grande, pois nenhum outro se afogou como ele tão completamente na humanidade". Não foi de um teólogo ou filósofo que ouvi essas palavras, mas de um muçulmano humilde. Chofer das Nações Unidas que trabalha comigo, esse africano modesto, mas verdadeiro príncipe do conhecimento do Corão soube mergulhar no mais fundo do abismo do Cristo: sua irredutível humanidade. "E o naufragar me é doce nesse mar".
A humana condição que partilhamos todos é mais humana talvez na marca de Caím, na triste característica que nos separa até das feras: a inexplicável capacidade de infligir sofrimento e morte a irmãos e semelhantes. E sem qualquer motivo racional, de graça, por intolerância, recusa de aceitar o outro, o diferente, ódio racial, fanatismo religioso ou insânia ideológica.
Nesta Páscoa da Ressurreição, o livro do Êxodo, o exílio em Babilônia, se renovam aos nosso olhos: 4.000 pessoas cruzam por hora a fronteira do Kossovo com a Albânia como para nos lembrar que 40 séculos de história e progresso não bastaram para fazer-nos melhores do que os assírios ou os egípcios antigos.
Massacres, "purificação" étnica, atrocidades, bombardeios maciços, é a repetição do ciclo infernal que fecha este século como o tinha inaugurado na Primeira Grande Guerra, em sangue e sofrimento. Auschwitz e o Holocausto não foram antídoto suficiente contra os milhões de mortos do Gulag stalinista e do terror maoísta; os campos de morte do Camboja não conseguiram evitar os de Ruanda; o genocídio recente da Bósnia não esperou que secasse a tinta dos escassos julgamentos do Tribunal Internacional para relançar edição incomparavelmente mais brutal no Kossovo.
A humanidade de Jesus exigiu que ele compartisse a mais escura treva do destino humano: a condição de supliciado, a morte dolorosa e injusta por tortura como um dentre milhões de presos políticos e de consciência ao longo dos séculos, como um dos nossos torturados, dos nossos desaparecidos do Brasil, do Chile, da Argentina, da América Latina, como parte da legião anônima de vítimas dos genocídios de ontem e de hoje.
Diante desse oceano de sofrimento, como soa irrisório falar em globalização, sobretudo a autêntica, capaz de transcender o estreito limite da economia para promover a unificação do espaço a serviço da comunicação e da colaboração entre todos os seres humanos. Como disse no Museu do Holocausto a alta comissária da ONU para os Refugiados, Sadako Ogata: "Enquanto não se acabar definitivamente com o genocídio, não poderá existir verdadeira globalização".
Mas, se o mistério da iniquidade jamais se esgota, tampouco acaba o mistério do amor, que renova incessantemente o milagre diário dos que oferecem a vida pelos demais. Nos sete últimos anos, para citar apenas os dados que conheço, foram 224 os religiosos bispos, sacerdotes e freiras, homens e mulheres mortos como testemunhas do amor e da presença solidária, dentre os quais 46 em 1996, 66 em 1997, 38 no ano passado, sem contar os leigos anônimos, os de outras religiões.
O dominicano Mons. Pierre Claverie, bispo de Orã, assassinado em agosto de 1996, resumiu o sentido profundo do sacrifício, o seu e o dos outros, ao dizer na televisão alguns dias antes de morrer: "O valor de minha vida depende de minha capacidade de doá-la".
Pouco meses antes, em maio, sete monges trapistas do mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, em Tibhirine, também na Argélia, haviam sido degolados pelos fundamentalistas. O prior do mosteiro, Dom Christian de Chergé, deixou uma carta à família que constitui um dos mais belos e pungentes documentos do século 20. Pressentindo o fim, dizia: "Saibam associar esta morte a tantas outras da mesma violência, abandonadas à indiferença do anonimato. Minha vida não tem mais ou menos preço do que outra qualquer. Em todo o caso, ela não tem a inocência da infância. Vivi o bastante para saber-me cúmplice do mal que infelizmente parece prevalecer no mundo e mesmo do que haverá de atingir-me cegamente. Chegado o momento, gostaria de ter o lapso de lucidez para pedir o perdão de Deus e dos meus irmãos em humanidade e perdoar, ao mesmo tempo, de todo coração, àquele que me houver atingido".
E, com honestidade desmistificadora, confessava: "Eu não saberia desejar uma tal morte. Parece-me importante dizer isto. Não vejo, com efeito, como poderia alegrar-me de que este povo que amo seja indistintamente acusado de meu assassinato. É caro demais pagar o que se chamará talvez de "graça do martírio" de devê-la a um argelino, sobretudo se ele diz agir por fidelidade ao que crê ser o Islão".
Terminava com palavras que mostram que, se a Paixão continua a culminar na morte, esta continua a ser transfigurada pela Ressurreição, pois o amor é mais forte do que a morte: "Esta vida perdida (....) dou graças a Deus, que parece tê-la querido para a alegria (....) Neste obrigado pela minha vida (....) eu vos incluo, amigos (....) e tu também, o amigo do último minuto, que não sabias o que fazias. Sim, para ti também, quero dizer este obrigado e este "A-Deus" (....) E que nos seja concedido de nos reencontrarmos, ladrões felizes, no paraíso, se Deus, Pai de nós dois, quiser. Amem! Inch" Allah".


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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