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OPINIÃO ECONÔMICA
Morte e transfiguração
RUBENS RICUPERO
"Jesus foi de fato um profeta
muito grande, pois nenhum outro
se afogou como ele tão completamente na humanidade". Não foi
de um teólogo ou filósofo que ouvi
essas palavras, mas de um muçulmano humilde. Chofer das Nações
Unidas que trabalha comigo, esse
africano modesto, mas verdadeiro príncipe do conhecimento do
Corão soube mergulhar no mais
fundo do abismo do Cristo: sua irredutível humanidade. "E o naufragar me é doce nesse mar".
A humana condição que partilhamos todos é mais humana talvez na marca de Caím, na triste
característica que nos separa até
das feras: a inexplicável capacidade de infligir sofrimento e morte a irmãos e semelhantes. E sem
qualquer motivo racional, de graça, por intolerância, recusa de
aceitar o outro, o diferente, ódio
racial, fanatismo religioso ou insânia ideológica.
Nesta Páscoa da Ressurreição, o
livro do Êxodo, o exílio em Babilônia, se renovam aos nosso olhos:
4.000 pessoas cruzam por hora a
fronteira do Kossovo com a Albânia como para nos lembrar que 40
séculos de história e progresso não
bastaram para fazer-nos melhores do que os assírios ou os egípcios antigos.
Massacres, "purificação" étnica,
atrocidades, bombardeios maciços, é a repetição do ciclo infernal
que fecha este século como o tinha
inaugurado na Primeira Grande
Guerra, em sangue e sofrimento.
Auschwitz e o Holocausto não foram antídoto suficiente contra os
milhões de mortos do Gulag stalinista e do terror maoísta; os campos de morte do Camboja não
conseguiram evitar os de Ruanda;
o genocídio recente da Bósnia não
esperou que secasse a tinta dos escassos julgamentos do Tribunal
Internacional para relançar edição incomparavelmente mais
brutal no Kossovo.
A humanidade de Jesus exigiu
que ele compartisse a mais escura
treva do destino humano: a condição de supliciado, a morte dolorosa e injusta por tortura como
um dentre milhões de presos políticos e de consciência ao longo dos
séculos, como um dos nossos torturados, dos nossos desaparecidos
do Brasil, do Chile, da Argentina,
da América Latina, como parte
da legião anônima de vítimas dos
genocídios de ontem e de hoje.
Diante desse oceano de sofrimento, como soa irrisório falar
em globalização, sobretudo a autêntica, capaz de transcender o estreito limite da economia para
promover a unificação do espaço
a serviço da comunicação e da colaboração entre todos os seres humanos. Como disse no Museu do
Holocausto a alta comissária da
ONU para os Refugiados, Sadako
Ogata: "Enquanto não se acabar
definitivamente com o genocídio,
não poderá existir verdadeira globalização".
Mas, se o mistério da iniquidade
jamais se esgota, tampouco acaba
o mistério do amor, que renova
incessantemente o milagre diário
dos que oferecem a vida pelos demais. Nos sete últimos anos, para
citar apenas os dados que conheço, foram 224 os religiosos bispos,
sacerdotes e freiras, homens e mulheres mortos como testemunhas
do amor e da presença solidária,
dentre os quais 46 em 1996, 66 em
1997, 38 no ano passado, sem contar os leigos anônimos, os de outras religiões.
O dominicano Mons. Pierre Claverie, bispo de Orã, assassinado
em agosto de 1996, resumiu o sentido profundo do sacrifício, o seu e
o dos outros, ao dizer na televisão
alguns dias antes de morrer: "O
valor de minha vida depende de
minha capacidade de doá-la".
Pouco meses antes, em maio, sete monges trapistas do mosteiro
de Nossa Senhora do Atlas, em Tibhirine, também na Argélia, haviam sido degolados pelos fundamentalistas. O prior do mosteiro,
Dom Christian de Chergé, deixou
uma carta à família que constitui
um dos mais belos e pungentes documentos do século 20. Pressentindo o fim, dizia: "Saibam associar esta morte a tantas outras da
mesma violência, abandonadas à
indiferença do anonimato. Minha vida não tem mais ou menos
preço do que outra qualquer. Em
todo o caso, ela não tem a inocência da infância. Vivi o bastante
para saber-me cúmplice do mal
que infelizmente parece prevalecer no mundo e mesmo do que haverá de atingir-me cegamente.
Chegado o momento, gostaria de
ter o lapso de lucidez para pedir o
perdão de Deus e dos meus irmãos
em humanidade e perdoar, ao
mesmo tempo, de todo coração,
àquele que me houver atingido".
E, com honestidade desmistificadora, confessava: "Eu não saberia desejar uma tal morte. Parece-me importante dizer isto. Não vejo, com efeito, como poderia alegrar-me de que este povo que amo
seja indistintamente acusado de
meu assassinato. É caro demais
pagar o que se chamará talvez de
"graça do martírio" de devê-la a
um argelino, sobretudo se ele diz
agir por fidelidade ao que crê ser o
Islão".
Terminava com palavras que
mostram que, se a Paixão continua a culminar na morte, esta
continua a ser transfigurada pela
Ressurreição, pois o amor é mais
forte do que a morte: "Esta vida
perdida (....) dou graças a Deus,
que parece tê-la querido para a
alegria (....) Neste obrigado pela
minha vida (....) eu vos incluo,
amigos (....) e tu também, o amigo
do último minuto, que não sabias
o que fazias. Sim, para ti também,
quero dizer este obrigado e este
"A-Deus" (....) E que nos seja concedido de nos reencontrarmos, ladrões felizes, no paraíso, se Deus,
Pai de nós dois, quiser. Amem!
Inch" Allah".
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O
Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve
aos domingos nesta coluna.
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