São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Indústria e finança

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Nos anos de sucesso do Plano Real, multiplicaram-se as críticas à industrialização brasileira. Elas concentravam-se na denúncia de uma suposta tendência à autarquia, à ineficiência, à falta de competitividade externa e à estatização. Estes, diziam os detratores, eram males congênitos do processo de substituição de importações. É bom notar que muita gente já havia apontado a exaustão do chamado "modelo de substituição de importações", sublinhando, aliás, alguns desafios importantes que estavam postos em meados da década dos 70: 1) a criação dos instrumentos e instituições de mobilização da poupança doméstica, particularmente para suportar o financiamento de longo prazo; 2) a reestruturação e modernização da grande empresa de capital nacional e de suas relações com o Estado; 3) a constituição do que Fernando Fanjzylber chamava de "núcleo endógeno de inovação tecnológica".
Entre 1974 e 1978, no último esforço de integração e modernização da matriz industrial, o II PND levou à exasperação o descompasso entre um nível elevado de formação bruta de capital e as condições domésticas de financiamento. O hiato entre a capacidade de financiamento a partir de fontes internas e a demanda de crédito de longo prazo foi coberto pela tomada de recursos externos. A maioria dos projetos, assim financiados, revelou uma limitada capacidade de gerar as divisas necessárias quando em operação, para pagar o endividamento em moeda estrangeira. Além disso, apesar das intenções do governo, o robustecimento, a modernização e a capacitação tecnológica da empresa nacional não avançaram o suficiente.
O segundo choque de preços do petróleo e o choque de juros promovido por Paul Volker no final de 1979 mudaram radicalmente as condições externas e decretaram a obsolescência da agenda reformista. A severa crise cambial que se abateu sobre o Brasil no início dos 80 foi o fator essencial para a sobrevivência do mal falado processo de substituição de importações. Em condições de extrema penúria de divisas, ele avançou até mesmo em segmentos produtivos em que a escala do mercado interno não recomendaria a produção doméstica.
Boa parte da capacidade produtiva criada durante a vigência do II PND, sobretudo no setor privado, foi empurrada para a exportação à custa de estímulos fiscais e cambiais. Rapidamente o país passou a exibir superávits comerciais superiores a 3% do PIB destinados a financiar a duras penas o serviço da dívida.
A estratégia de "desenvolvimento" do real -estava (ou ainda está) associada às recomendações do Consenso de Washington. Adotada pelos governos "avançados" da América Latina apóia-se em quatro supostos: 1) a estabilidade de preços cria condições para o cálculo econômico de longo prazo, estimulando o investimento privado; 2) a abertura comercial (e a valorização cambial) impõe disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade; 3) as privatizações e o investimento estrangeiro removeriam gargalos de oferta na indústria e na infra-estrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência; 4) a liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto à evolução da taxa real de câmbio, atrairia poupança externa em escala suficiente para complementar o esforço de investimento doméstico e para financiar o déficit em conta corrente.
O resultado dessa nova empreitada, do ponto de vista do desenvolvimento industrial foi, para dizer pouco, desapontador. Ao contrário do processo de endividamento dos anos 60 e 70 que financiou, direta e indiretamente, projetos destinados a substituir importações e/ou a estimular as exportações, a nova etapa de dependência do financiamento externo, aumentou consideravelmente a vulnerabilidade da economia brasileira.
Na verdade o uso abusivo da âncora cambial e dos juros elevados desestimulou os projetos voltados para as exportações, promoveu um "encolhimento" das cadeias produtivas -afetadas por importações "predatórias" e aumentou a participação da propriedade estrangeira no estoque de capital doméstico. Esses são fatores que vão levar a um agravamento estrutural do desequilíbrio externo. Consequências de longo prazo sobre o balanço de pagamentos têm sido ignoradas pelos que já celebram o fim da crise.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 55, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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