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Opinião Econômica
A América são eles
RUBENS RICUPERO
A esperança mudou de lado: é o
que capta bem a frase de meu amigo Sérgio Danese. Cem anos atrás,
muitos de nossos avós deixavam em
massa um continente envelhecido,
sem perspectivas, às vésperas de
duas guerras mundiais, e cruzavam
o Atlântico para "fazer a América".
Passaria hoje pela cabeça de alguém fazer o mesmo?
Apesar da falta de resultados ou
até mesmo devido a isso, a reunião
que vem de encerrar-se no Rio de
Janeiro mostra como se completou a
inversão de papéis entre a Europa e
a América Latina. As expectativas
em matéria de ajuda, cooperação,
acesso a mercados, quase todas se
concentraram unilateralmente em
relação à Europa cada vez mais integrada, com moeda única, fortalecida pela comunidade de 15 países
com fila de adesão à porta.
Enquanto isso, penosamente nos
arrastamos para fechar a década (e
o século), se não perdida como a de
80, pelo menos medíocre: com a
queda deste ano, a média do decênio para todo o continente provavelmente vai ficar em menos de 3%.
É pouco mais da metade apenas do
desempenho nos 35 anos do pós-guerra, quando a Europa conhecia
também os seus "30 anos gloriosos"
de expansão. Crescíamos então a
5,5% anuais em média entre 1945 e
1980. Os que agora gostam de jogar
pedra nesse passado caricaturado
como populista, varguista, juscelinista, de proteção à indústria nacional, de substituição de importações
teriam um pouco mais de autoridade moral e intelectual se conseguissem ter chegado perto desse desempenho.
É certo que houve então erros e
distorções, que levaram, em seu devido tempo, ao esgotamento e inelutável naufrágio daquele modelo de
desenvolvimento. Tinha ele sobre o
atual a superioridade de propor-se
explicitamente à
integração, por meio da geração
de empregos, das legiões de marginalizados da economia de mercado.
Esse objetivo foi em parte alcançado
pois na época a economia latino-americana mostrava-se capaz de
criar empregos. Foi o que permitiu o
aparecimento, em país após país, da
sociedade e da democracia de massas, base da aliança política hegemônica que durante anos regeu os
destinos da maioria do continente.
O modelo desses anos merece, sem
dúvida, crítica severa. Sucede, porém, que na maior parte das vezes
ele é atacado e criticado não tanto
por seus defeitos, o mais grave dos
quais foi não ter ousado a reforma
social, mas por causa de suas qualidades: a ênfase no caráter nacional
do projeto de país, a partir mesmo
da concepção intelectual nascida na
América Latina e não importada do
Consenso de Washington, o apoio
ao fortalecimento de classe empresarial que servisse de fundamento a
vigoroso setor produtivo local, a
consolidação do operariado urbano
e sua organização em sindicatos capazes de lutar eficazmente pela melhoria de vida de seus membros, o
desenvolvimento da cultura, da
universidade, da pesquisa científica
nacionais.
Onde ele mais fracassou foi em relação à concentração da riqueza e
da renda, que até exacerbou ao tentar o impossível: conciliar o desenfreado consumismo dos empresários novos-ricos e da classe média, já
na ocasião siderada por Miami e
Nova York, com o consumo adicional reprimido até então da massa
urbana em expansão. O resultado
foi o populismo distribucionista, a
aceleração da inflação, a agudização das tensões e dos conflitos sociais, a polarização ideológica e a
radicalização da sociedade. A Guerra Fria fez o resto, e os regimes democráticos e desenvolvimentistas
dos anos 50 e 60, Frondizi na Argentina, Frei no Chile, JK no Brasil, Lleras na Colômbia, os governos da
Ação Democrática na Venezuela,
acabaram quase todos tragados pela onda das intervenções militares.
Emergimos finalmente dessa fase
e parecia, em certo momento, que
havíamos de novo descoberto a chave da combinação virtuosa de democracia com economia saudável,
como aparentemente crêem a nosso
respeito norte-americanos e europeus. Mas será verdade? Ou no fundo inventamos uma espécie de neopopulismo consistente em garantir
o consumismo pornográfico de especuladores financeiros, mediante o
recurso à dependência de doses
crescentes de recursos financeiros de
curto prazo que nos escravizam aos
juros e caprichos de mercados estrangeiros?
Multiplicam-se, de fato, os sinais
de que nos aproximamos, se é que já
não estamos lá, do exaurimento histórico do mais recente ciclo político
e econômico da América Latina. A
Venezuela antecipou talvez a tendência e atravessou toda a década
nas convulsões, tentativas de golpes,
levantes populares e derivas autoritárias desencadeadas pela reação
ao pacote do FMI dez anos atrás.
A Colômbia, país de crescimento
mais estável de todo o continente,
cuja última recessão data de 1931,
começa pela primeira vez a conhecer a desaceleração econômica por
causa da guerrilha. O Equador se
debate com gravíssima crise de dívida, superposta a vários desastres e
traumas políticos ao longo dos últimos anos, e o Peru só logrou dominar o desafio do Sendero Luminoso
e da desorganização econômica
com o recurso a saída política pouco
ortodoxa. O Chile, até ontem o
exemplo mais completo de êxito do
ajuste econômico, terminou 1998
com quase 6,5% de déficit em conta
corrente e teve recessão nos dois primeiros trimestres de 1999. A Argentina se prepara a afrontar eleições
com desemprego de 15%. O México,
que escolheu o caminho da integração ao mercado dos EUA, dificilmente acessível aos demais na mesma proporção, terá no ano 2000
eleições que serão possivelmente o
primeiro teste sério ao domínio do
PRI. Não preciso dizer a leitores
brasileiros o sentimento de cansaço
e exaustão de proposta que permeia
a opinião pública nacional neste
momento.
O pior desse panorama escuro é
seu balanço em termos humanos. Já
me referi diversas vezes a que, 18
anos após o desencadeamento da
crise da dívida externa de 1982, a região continua com índices de pobreza e indigência vários pontos percentuais acima dos prevalecentes no
início dos 80. Mais perto de nós,
apesar das reformas, o emprego entre 1989 e 1995 declinou em média
0,3% (acentuando-se mais com a
crise atual) e o desemprego saltou
de 5,6% a 7,2%! A economia latino-americana desaprendeu a arte de
criar emprego.
Sem pleno emprego produtivo,
sem eliminação da pobreza extrema e redução da desigualdade, não
há economia que se sustente ou regime político democrático que dure
por muito tempo. É possível que as
reformas já feitas e as por fazer acabem por produzir efeitos. Não se pode, porém, confiar demais nessa
promessa. É tempo de refletir nas
razões da demora em realizar a promessa e dar sentido à ação coletiva
a fim de voltar a criar emprego e esperança.
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O
Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve
aos domingos nesta coluna.
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