São Paulo, Domingo, 04 de Julho de 1999
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Opinião Econômica
A América são eles

RUBENS RICUPERO
A esperança mudou de lado: é o que capta bem a frase de meu amigo Sérgio Danese. Cem anos atrás, muitos de nossos avós deixavam em massa um continente envelhecido, sem perspectivas, às vésperas de duas guerras mundiais, e cruzavam o Atlântico para "fazer a América". Passaria hoje pela cabeça de alguém fazer o mesmo?
Apesar da falta de resultados ou até mesmo devido a isso, a reunião que vem de encerrar-se no Rio de Janeiro mostra como se completou a inversão de papéis entre a Europa e a América Latina. As expectativas em matéria de ajuda, cooperação, acesso a mercados, quase todas se concentraram unilateralmente em relação à Europa cada vez mais integrada, com moeda única, fortalecida pela comunidade de 15 países com fila de adesão à porta.
Enquanto isso, penosamente nos arrastamos para fechar a década (e o século), se não perdida como a de 80, pelo menos medíocre: com a queda deste ano, a média do decênio para todo o continente provavelmente vai ficar em menos de 3%. É pouco mais da metade apenas do desempenho nos 35 anos do pós-guerra, quando a Europa conhecia também os seus "30 anos gloriosos" de expansão. Crescíamos então a 5,5% anuais em média entre 1945 e 1980. Os que agora gostam de jogar pedra nesse passado caricaturado como populista, varguista, juscelinista, de proteção à indústria nacional, de substituição de importações teriam um pouco mais de autoridade moral e intelectual se conseguissem ter chegado perto desse desempenho.
É certo que houve então erros e distorções, que levaram, em seu devido tempo, ao esgotamento e inelutável naufrágio daquele modelo de desenvolvimento. Tinha ele sobre o atual a superioridade de propor-se explicitamente à
integração, por meio da geração de empregos, das legiões de marginalizados da economia de mercado. Esse objetivo foi em parte alcançado pois na época a economia latino-americana mostrava-se capaz de criar empregos. Foi o que permitiu o aparecimento, em país após país, da sociedade e da democracia de massas, base da aliança política hegemônica que durante anos regeu os destinos da maioria do continente.
O modelo desses anos merece, sem dúvida, crítica severa. Sucede, porém, que na maior parte das vezes ele é atacado e criticado não tanto por seus defeitos, o mais grave dos quais foi não ter ousado a reforma social, mas por causa de suas qualidades: a ênfase no caráter nacional do projeto de país, a partir mesmo da concepção intelectual nascida na América Latina e não importada do Consenso de Washington, o apoio ao fortalecimento de classe empresarial que servisse de fundamento a vigoroso setor produtivo local, a consolidação do operariado urbano e sua organização em sindicatos capazes de lutar eficazmente pela melhoria de vida de seus membros, o desenvolvimento da cultura, da universidade, da pesquisa científica nacionais.
Onde ele mais fracassou foi em relação à concentração da riqueza e da renda, que até exacerbou ao tentar o impossível: conciliar o desenfreado consumismo dos empresários novos-ricos e da classe média, já na ocasião siderada por Miami e Nova York, com o consumo adicional reprimido até então da massa urbana em expansão. O resultado foi o populismo distribucionista, a aceleração da inflação, a agudização das tensões e dos conflitos sociais, a polarização ideológica e a radicalização da sociedade. A Guerra Fria fez o resto, e os regimes democráticos e desenvolvimentistas dos anos 50 e 60, Frondizi na Argentina, Frei no Chile, JK no Brasil, Lleras na Colômbia, os governos da Ação Democrática na Venezuela, acabaram quase todos tragados pela onda das intervenções militares.
Emergimos finalmente dessa fase e parecia, em certo momento, que havíamos de novo descoberto a chave da combinação virtuosa de democracia com economia saudável, como aparentemente crêem a nosso respeito norte-americanos e europeus. Mas será verdade? Ou no fundo inventamos uma espécie de neopopulismo consistente em garantir o consumismo pornográfico de especuladores financeiros, mediante o recurso à dependência de doses crescentes de recursos financeiros de curto prazo que nos escravizam aos juros e caprichos de mercados estrangeiros?
Multiplicam-se, de fato, os sinais de que nos aproximamos, se é que já não estamos lá, do exaurimento histórico do mais recente ciclo político e econômico da América Latina. A Venezuela antecipou talvez a tendência e atravessou toda a década nas convulsões, tentativas de golpes, levantes populares e derivas autoritárias desencadeadas pela reação ao pacote do FMI dez anos atrás.
A Colômbia, país de crescimento mais estável de todo o continente, cuja última recessão data de 1931, começa pela primeira vez a conhecer a desaceleração econômica por causa da guerrilha. O Equador se debate com gravíssima crise de dívida, superposta a vários desastres e traumas políticos ao longo dos últimos anos, e o Peru só logrou dominar o desafio do Sendero Luminoso e da desorganização econômica com o recurso a saída política pouco ortodoxa. O Chile, até ontem o exemplo mais completo de êxito do ajuste econômico, terminou 1998 com quase 6,5% de déficit em conta corrente e teve recessão nos dois primeiros trimestres de 1999. A Argentina se prepara a afrontar eleições com desemprego de 15%. O México, que escolheu o caminho da integração ao mercado dos EUA, dificilmente acessível aos demais na mesma proporção, terá no ano 2000 eleições que serão possivelmente o primeiro teste sério ao domínio do PRI. Não preciso dizer a leitores brasileiros o sentimento de cansaço e exaustão de proposta que permeia a opinião pública nacional neste momento.
O pior desse panorama escuro é seu balanço em termos humanos. Já me referi diversas vezes a que, 18 anos após o desencadeamento da crise da dívida externa de 1982, a região continua com índices de pobreza e indigência vários pontos percentuais acima dos prevalecentes no início dos 80. Mais perto de nós, apesar das reformas, o emprego entre 1989 e 1995 declinou em média 0,3% (acentuando-se mais com a crise atual) e o desemprego saltou de 5,6% a 7,2%! A economia latino-americana desaprendeu a arte de criar emprego.
Sem pleno emprego produtivo, sem eliminação da pobreza extrema e redução da desigualdade, não há economia que se sustente ou regime político democrático que dure por muito tempo. É possível que as reformas já feitas e as por fazer acabem por produzir efeitos. Não se pode, porém, confiar demais nessa promessa. É tempo de refletir nas razões da demora em realizar a promessa e dar sentido à ação coletiva a fim de voltar a criar emprego e esperança.


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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