|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Raízes do autoritarismo brasileiro
MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
Em homenagem aos mortos na luta pela terra
Na nossa história recente, as
raras passagens pela democracia política nunca conseguiram
estabelecer um Estado de Direito com instituições capazes de
conter dentro delas o seu próprio aperfeiçoamento. A moldura de regulação dos conflitos das
oligarquias territoriais e financeiras sempre ameaça rasgar-se
ao menor solavanco nas relações de poder intraburguesas.
As lutas paralelas dos movimentos sociais sempre serviram de
pretexto para o endurecimento
do regime político. O acesso à
terra, a educação e os direitos do
trabalho nunca puderam ser
reivindicados abertamente pela
nossa população rural e urbana
nos marcos do nosso precário
Estado de Direito. Não por falta
de "leis", mas porque uma das
marcas terríveis do nosso capitalismo selvagem foi a descolagem completa entre a ideologia
das elites bacharelescas liberais
ou libertárias e os pactos de poder ferozmente conservadores
que conduziram o país por meio
de sucessivas alianças entre as
cúpulas políticas territoriais e as
cúpulas do poder ligadas ao Império e ao dinheiro.
Nossas "transições democráticas interrompidas" nunca alteraram a marcha batida do capitalismo excludente, dando a impressão sistemática de que os
ideais reformistas ou revolucionários estão "fora de lugar",
quando na verdade as idéias
postas em prática pela chamada
"sociedade civil" burguesa brasileira sempre estiveram no lugar: o de manter em movimento
o "moinho satânico" do capital
em suas várias formas.
Para manter o movimento do
dinheiro e assegurar a propriedade do território -a ser retalhado e reocupado por formas
mercantis sempre renovadas de
acumulação patrimonial-, o
Estado brasileiro é chamado periodicamente a intervir de forma centralizada e arbitrária. Os
propósitos da intervenção autoritária são sempre os mesmos:
manter a segurança e o domínio
das nossas classes proprietárias
ou tentar validar o estoque de
riquezas acumulado, tanto pelo
capital nacional como estrangeiro.
As nossas reformas burguesas
sempre tiveram como limites
dois medos seculares das nossas
elites ilustradas: o medo do Império e o medo do povo. Todas as
tentativas reformistas democráticas tenderam sistematicamente a extravasar os limites de tolerância da dominação oligárquica, fosse ele estabelecido pelas armas ou pelo famoso "pacto
de compromisso" das elites políticas e sociais. A tentativa de
conciliar o mandonismo das
nossas burguesias regionais, donas do território, com o cosmopolitismo dos donos do dinheiro
associados ao Império sempre
produziu alianças políticas que
excluíram os interesses majoritários da cidadania. Esse forte
autoritarismo ligado à terra e
ao dinheiro serviu sempre de
embasamento para aniquilar as
lutas populares e das classes médias radicalizadas, nas suas tentativas recorrentes de levar à
prática as, nunca concluídas, reformas democráticas.
Nem os pactos oligárquicos, liberais ou autoritários, nem os
projetos "nacional-desenvolvimentistas" encontraram tempo,
dinheiro ou razão suficientes
para levar adiante a reforma
agrária e o ensino básico universal. Os sucessivos pronunciamentos sobre a "necessidade" de
reforma agrária -desde o patriarca da Independência, passando pelo programa do Estatuto da Terra do governo Castelo
Branco até os nossos dias- dão
uma demonstração inequívoca
da falta de vontade política do
nosso poder central de enquadrar num pacto social concreto
os direitos do nosso povo. Mesmo quando consagrados explicitamente em "pactos constitucionais", sempre formais e "provisórios".
A "necessidade" de ensino público fundamental também vem
sendo reiterada como "direito
universal" desde o Ministério da
Educação do Estado Novo até o
governo Fernando Henrique
Cardoso, com os resultados conhecidos. No Brasil, até hoje, as
tradicionais reformas burguesas continuam, portanto, sendo
"revolucionárias" e, como tal,
difíceis de aceitar pela ordem
social vigente.
O fato de a nossa "revolução
democrática-burguesa" continuar "incompleta" não se justifica, porém, nem pelo caráter
tardio do nosso capitalismo,
nem porque os nossos burocratas de Estado sempre procuraram fazer a "revolução pelo alto". Muitos outros países de capitalismo tardio, com governos
autoritários e sociedades atrasadas, no seu processo de construção nacional, levaram a cabo
as reformas agrárias e de ensino, requeridas pelas suas "modernizações conservadoras".
Na verdade, a história vitoriosa da constituição do capitalismo em mais de cinco quartos de
século de Brasil independente e
os seus percalços e "desvios históricos", do ponto de vista da incorporação popular, parecem
dever pouco tanto à herança colonial quanto às idéias iluministas que animaram os corações e mentes de nossas elites
bem pensantes.
O dado estrutural mais relevante para a história social e política da nossa "modernidade"
parece ter sido sempre a apropriação privada de um território de dimensões continentais
apenas para valorização mercantil-patrimonialista, sem que
o uso social da terra e dos seus
recursos naturais fosse levado
em consideração pelos sucessivos regimes "republicanos" e pelas repetidas "reformas fiscais".
Ordem sempre significou domínio duro das classes proprietárias sobre a terra e as classes
subordinadas, e progresso sempre resultou na acumulação "familiar" de capital e riqueza,
qualquer que fosse a inspiração
ideológica, positivista ou liberal, das elites no poder. Nunca se
conseguiu constituir, por isso,
nenhuma espécie de consenso
amplo da "sociedade civil" sobre como governar de forma democrática o nosso país.
O processo de deslocamentos
espaciais maciços das migrações
rurais, em busca de terra, e rurais-urbanas, em busca de trabalho remunerado, produziu
mudanças radicais nas condições de vida das nossas populações, mas sempre com um alargamento nas formas de exploração da mão-de-obra. Esse imenso processo "migratório" e de
deslocamento recorrente das
"fronteiras" de ocupação e de
exploração capitalista não permitiu, até hoje, a formação de
classes sociais subordinadas
mais homogêneas e sedimentadas capazes de um enfrentamento sistemático com as classes dominantes que pudesse levar a uma ordem civil burguesa
estabilizada e democrática.
Por sua vez, a "ordem" das elites de negócios sempre foi capaz
de mudar as "regras jurídicas" e
fazer "contratos de gaveta",
produzindo assim uma sociedade mercantil predatória em
constante "fuga para a frente",
sem normas e sem dinheiro permanentes. A nossa (des)ordem
civil burguesa jamais foi capaz
de auto-administrar-se nos
marcos de um Estado de Direito
que respeitasse pelo menos os
contratos privados, que dizer o
direito público das gentes. Recorrendo periodicamente a golpes militares ou a elites políticas
"salvacionistas", as classes dominantes brasileiras não enfrentaram até hoje uma acumulação política de forças democráticas acompanhadas de uma
participação societária popular,
capazes de produzir uma verdadeira sociedade civil emancipada.
As "forças de ocupação" dos
donos do Império, do Território
e do Dinheiro sobrepuseram-se
sempre aos interesses de vida da
maioria da população brasileira. Percorrendo os seus caminhos de dominação, ao longo
dos últimos dois séculos, podem
ser encontradas as razões da riqueza e da miséria da nação
brasileira. É por isso que as bandeiras da emancipação nacional, da democracia e da justiça
social continuam, hoje como ontem, a ser bandeiras esfarrapadas por sucessivas derrotas.
No entanto, essas bandeiras
emancipatórias são indissociáveis e, enquanto não se tornarem uma ideologia hegemônica
e consciente da maioria da sociedade nos sucessivos embates
das lutas populares, não será
possível mudar o significado
histórico de um projeto de desenvolvimento para o futuro.
Maria da Conceição Tavares, 68, economista, é
professora emérita da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da
Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
www.abordo.com.br/mctavares
e-mail: mctavares@cdsid.com.br
Texto Anterior: Opinião Econômica - Rubens Ricúpero: A América são eles Próximo Texto: Asiáticos enfrentam preconceito para crescer Índice
|