São Paulo, sexta, 4 de setembro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Mitos federalistas de 1988

MAILSON DA NÓBREGA

Colunista desta Folha, a quem respeito e admiro, comentou meu artigo de sexta-feira, no qual mostrei que a partilha da arrecadação e suas vinculações determinam que o aumento de receitas do governo gera automática elevação de gastos.
Ele não contestou os argumentos, mas aproveitou para desancar administradores federais e brandir sua própria e singela teoria sobre as origens das crises dos anos 80 e de 94, que a meu ver têm causas mais complexas.
Acusou-me, não sei com base em quê, de ter querido dizer "que todo aumento de arrecadação repassado para Estados e municípios será transformado em mais gasto, posto que são todos governados por administradores irresponsáveis e populistas".
O que eu disse, e repito, é que "à União tem cabido o esforço de reduzir o déficit", o que está longe de ter o significado em que o colunista avançou.
Ainda que haja muitos casos de irresponsabilidade e descompromisso, como os verificados nas finanças de São Paulo e na utilização dos recursos da privatização, jamais usei esse raciocínio, no artigo ou em outros que tenho escrito sobre o tema.
Na realidade, implícita no artigo está a idéia de que pode ser até mais difícil aos governos subnacionais controlar seus déficits. Particularmente nos Estados, também é enorme o problema da vinculação e da rigidez da despesa.
Eles destinam 25% de toda sua receita líquida para a educação (18% na União). As despesas de pessoal representam mais de 80% da receita líquida em Alagoas e no Rio Grande do Sul e mais de 70% no Piauí, no Paraná, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.
Nessas circunstâncias, o déficit é mais que natural na maioria dos Estados. Há, assim, uma propensão ao endividamento, inclusive para despesas de custeio. Daí o esforço da União em criar barreiras ao aumento de suas dívidas.
O colunista parece ser um dos muitos prisioneiros de dois mitos. Primeiro, o de que os críticos do federalismo torto de 1988, como eu, são saudosistas do centralismo. Segundo, o de que a descentralização de receitas é obra exclusiva da nova Constituição.
Não visto a carapuça de adorador do centralismo. Ao contrário, minha longa passagem pelo governo foi marcada por iniciativas para reduzir o poder de burocratas e ministros e para aumentar a transparência do Orçamento público.
Especificamente quanto ao federalismo, propus em 1988, juntamente com o então ministro João Batista de Abreu, eliminar o papel da União em atividades típicas dos Estados e municípios, o que ficou conhecido como "operação desmonte".
O Brasil é reconhecido internacionalmente como uma das federações mais descentralizadas. O aumento da participação dos Estados e municípios na receita da União não se operou, todavia, em 1988, mas ao longo de quase 15 anos.
Antes, houve quatro emendas constitucionais aumentando a partilha do Imposto de Renda, do IPI e dos impostos únicos, em 1974, 1979, 1983 e 1986.
Os percentuais dos fundos de participação passaram de 10% em 1974 do IR e do IPI para 31% em 1986. Na Constituição de 1988, subiram para 44% do IR e 54% do IPI.
Estive perto de todo esse processo. Antes de virar ministro, fui secretário-geral do Ministério da Fazenda nos governos Figueiredo e Sarney (cargo hoje equivalente ao de Pedro Parente) e tornei-me interlocutor do Congresso nas mudanças de 1983 e 1988.
Nessas ocasiões e até hoje, minha crítica sempre se dirigiu ao erro de se transferirem receitas sem a correspondente transferência de encargos.
Em vez disso, foram criadas novas despesas para a União. Por exemplo, com o Regime Jurídico Único, o gasto com inativos e pensionistas da União passou, em valores reais, de R$ 4,6 bilhões em 1987 para R$ 18,8 bilhões em 1997 (mais R$ 14,2 bilhões).
Isso sim é centralismo, produzido pelos festejados descentralizadores de 1988. Já os ganhos de participação dos governos subnacionais no IR e no IPI foram de R$ 7,6 bilhões (atingiram R$ 21,8 bilhões em 1977 e teriam sido de R$ 14,2 bilhões sem a nova Constituição).
Há também analistas sustentando que a União tentou, a partir de 1988, recentralizar as receitas mediante criação e aumento das contribuições. A contragosto, fui co-autor da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e da elevação da atual Cofins.
Para uma interpretação autêntica, garanto que as medidas visaram essencialmente a contrabalançar o forte impacto dos aumentos gerados pela Constituição sobre os chamados gastos sociais, especialmente os da Previdência. Trata-se, pois, de outro mito.
À parte os mitos e a polêmica, existe uma verdade insofismável: a solução para o regime fiscal depende de reformas para mudá-lo e não do crescimento da economia, ainda que este seja mais do que desejável.


Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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