São Paulo, sexta, 4 de setembro de 1998

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ARTIGO
Por que o BC deveria ficar longe da política


JAIRO SADDI

Como se não bastasse a possibilidade de um ataque especulativo ao real, o nosso Banco Central se volta para sua eterna crise hamletiana de, por um lado, ter suas ações limitadas pela estratégia da reeleição de FHC -como lembrou abalizadamente Celso Pinto, desta Folha (25/8)- e, por outro, ter que agir tecnicamente na defesa da moeda, criando mecanismos seguros que garantam a credibilidade e, portanto, a confiança dos investidores. E nunca é demais frisar: o valor da moeda reflete a confiança em um determinado país.
Gourevitch indica que as escolhas econômicas de um país se referem ao que ele denomina coalizão social: todos os agentes econômicos têm preferências políticas e eles se organizam de modo a ver seus anseios realizados. Os políticos servem como representantes dessas coalizões e, uma vez investidos em cargos públicos, influenciam e determinam decisões monetárias.
Assim, o Bundesbank se ocupa em defender "in extremis" o marco porque expressa apenas o horror do povo alemão à hiperinflação dos anos 20.
A conclusão lógica é que, se um líder político espera estar (ou sabe que estará) no poder por um longo período de tempo, vai preferir um alto grau de liberdade e controle sobre o processo de decisão das políticas econômicas. No entanto, se não tiver essa certeza, pode preferir "atar suas próprias mãos para atar as mãos de seu sucessor", numa alusão a Ulisses, figura mitológica grega, que ordena a seus subordinados que o amarrem ao convés de seu navio para que esteja livre das tentações fatais do canto da sereia. A tentação constitui-se claramente em deixar prioridades técnicas em favor de opções políticas.
Tanto a preferência dos agentes quanto a própria expectativa política dos que detêm o poder influenciaram decisivamente essa concepção, em um longo e moroso processo histórico, repleto de experiências desastrosas, conduzindo a uma redefinição de interesses e procurando reduzir o poder discricionário dos bancos centrais. Esse é o dilema do nosso Banco Central, que neste ano eleitoral prefere se engajar na campanha governista a agir na construção de sua credibilidade.
Credibilidade pode ser definida como qualidade daquilo em que se pode crer ou se toma como verdade, implicando julgamento de confiança e segurança. Um banco central que não goze de credibilidade faz com que os agentes econômicos sobreestimem as taxas corretivas de preços. Além disso, quanto menos crível a ação do banco central, maior a taxa de juros oferecida ao mercado para que seus títulos sejam detidos, sob o risco de a moeda fluir para outros ativos ou mesmo para o consumo.
Bancos centrais com credibilidade, ao contrário, acabam gerando moedas fortes. Não impõem um prêmio ou um risco por suas operações, por não estar enfrentando vieses inflacionários. Paradoxalmente, maior credibilidade dá-lhes o necessário instrumental da condução das políticas monetárias mais restritivas no curto prazo, se assim for necessário.
É inegável que o Banco Central corre o risco de ceder à pressão política num ano como este, e tal atitude será crítica para a manutenção do próprio Real. Os diretores do Banco Central sabem também que não ocuparão seus cargos para sempre e que dependem da eleição de FHC para continuar neles.
O resultado disso é que pode ocorrer uma acomodação às demandas do Executivo ou do Legislativo, como meio de prevenção da tomada do controle e da perda do espaço que conquistaram até aqui. A autoridade monetária é um agente político como qualquer outro, passível de sofrer pressões, e está, por isso, constantemente negociando seu espaço político. Esse risco, irremediavelmente, conduz à destruição da credibilidade de um banqueiro central, que é o maior ativo que qualquer autoridade monetária pode ter.
O Banco Central deve procurar apoio externo para conseguir aprovar sua autonomia, especialmente como sinal de credibilidade no início de governo, caso FHC seja reeleito (Tony Blair estarreceu a opinião pública quando declarou o venerável Banco da Inglaterra autônomo do Poder Executivo).
A comunidade financeira quase sempre irá preferir uma autoridade monetária desligada das pressões do Poder Executivo, engajada na defesa da ordem monetária da sociedade, como forma de resguardar seus interesses e, ao mesmo tempo, desenvolver os mercados financeiros. Para o cidadão comum, um banco central forte pode significar a garantia da defesa contra os excessos do Executivo nos gastos desmedidos do Estado e a certeza de que o real estará imune a ataques externos.
Do prisma externo, o preço da moeda -a taxa de câmbio- deve ser sinal de que há, em Brasília, um grupo de banqueiros centrais que passa o dia zelando pela estabilidade da "moeda, disposto, como em uma cruzada heróica, a dar tudo para que a paridade cambial se mantenha estável. Para isso, não há nada melhor do que ficar longe, bem longe da política.


Jairo Saddi, 33, é advogado em São Paulo. Doutor em direito econômico (USP), foi "researcher" da Harvard Law School (EUA). É autor do livro "O Poder e o Cofre. Repensando o Banco Central". (Textonovo, 1997). E-mail: jairo@saddi.com.br


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