São Paulo, Sábado, 04 de Setembro de 1999
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LETRA CAPITAL

Sen resgata a relevância da ética na economia

OSCAR PILAGALLO
Editor de Dinheiro

As pessoas agem motivadas apenas pelo interesse próprio ou suas opções são influenciadas também por considerações de ordem ética?
Para a teoria econômica dominante, o que importa é apenas o auto-interesse. Para Amartya Sen, economista indiano que ganhou o Nobel do ano passado, sentimentos como a solidariedade não podem ser desprezados em análises econômicas, sob pena de incompreensão de parte dos estímulos que moldam a realidade.
Sen alinha-se à contracorrente no livro "Sobre Ética e Economia", de 1987, que, mesmo publicado no Brasil 12 anos mais tarde, mantém-se atual.
Para Amartya Sen, não há evidências de que a tentativa de maximizar os ganhos pessoais seja o aspecto que melhor reflita o comportamento humano.
Não se trata de atribuir ao homem qualidades magnânimas. Ou, como diz Sen, de "afirmar que as pessoas sempre agirão de maneiras que elas próprias defendem moralmente". Trata-se, simplesmente, de reconhecer que "as deliberações éticas não podem ser totalmente irrelevantes para o comportamento humano real".
O fato de a teoria econômica subestimar a ética resulta de um progressivo afastamento entre as duas abordagens que, para Sen, foi provocado por interpretações equivocadas de filósofos e economistas. Portanto, é natural que ele proponha a releitura de clássicos.
Sen remonta a Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.). Lembra que o filósofo grego, para quem "a riqueza não é o bem que buscamos, sendo ela apenas útil e no interesse de outra coisa", associa o tema da economia aos fins humanos.
Na tentativa de estabelecer uma linhagem de pensamento econômico que valoriza a ética, Sen cita Karl Marx e procura resgatar Adam Smith, que, para seus "exaltados seguidores", seria o guru do auto-interesse.
Ao escocês Smith (1723-1790) é atribuído o primeiro trabalho de peso sobre o "laissez-faire", que estabelece os princípios da economia liberal, de mercado.
Mesmo assim, Amartya Sen não abre mão de Smith. Estende-se sobre a questão da fome epidêmica, cuja causa o autor de "A Riqueza das Nações" diz ser a escassez de alimentos. Sen, ele próprio, ganhou notoriedade ao argumentar que a fome é, antes, consequência da má distribuição de renda. Mas "desculpa" Smith, afirmando que, afinal, ele não se opôs à ajuda aos pobres com dinheiro público.
"A interpretação errônea da postura complexa de Smith com respeito à motivação e aos mercados e o descaso por sua análise ética dos sentimentos e do comportamento refletem bem quanto a economia se distanciou da ética com o desenvolvimento da economia moderna", escreve ele.
Sen contesta também o conceito de eficiência conhecido por "otimalidade de Pareto", que tem sido usado em favor da tese do auto-interesse como único indutor de comportamento.
Ele se refere, embora não se preocupe em contextualizar, ao economista e sociólogo italiano Vilfredo Pareto (1848-1923), que estabeleceu os fundamentos da economia do bem-estar social.
O ponto ótimo de sua teoria corresponde àquele em que é impossível para um indivíduo melhorar de vida sem, com isso, prejudicar a vida do outro.
Nessa concepção, "se uma mudança for vantajosa para cada pessoa, tem de ser uma mudança proveitosa para a sociedade". Amartya Sen retruca, porém, que "identificar vantagem com utilidade nada tem de óbvio". Afirma ele: "Não é verdade que qualquer movimento que se desvie de um estado ótimo de Pareto para outro não-ótimo deva reduzir a utilidade agregada".
Ou seja, seria possível que um indivíduo, motivado por razões éticas, abrisse mão de uma vantagem pessoal para que outro progredisse sem, com isso, ameaçar a eficiência econômica. E ele faria isso ao perceber que seria melhor para o conjunto da sociedade. O corolário é que, se a sociedade ganha, ele ganha também.
"Sobre Ética...", o primeiro trabalho de Sen a sair no Brasil, é um livro híbrido, que fica no meio do caminho entre a teoria e a prática. Embora baseado em conferências, não é uma obra de divulgação. Mas também não chega a ser, tampouco, uma formulação original (ele próprio se dedicara ao assunto em trabalhos anteriores).
Talvez por isso seja um livro que, apesar de acessível ao leigo, não é de leitura fácil. Quanto à tradução, em geral flui, mas há tropeços que atrapalham o sentido, como o de preferir "simpatia" a "solidariedade" para a expressão em inglês "sympathy".
De qualquer maneira, sua publicação no Brasil, num momento em que cresce a oposição ao modelo liberal, é oportuna.
O livro, aliás, chega logo após Sen ter sido alvo de um ataque descabido do governo brasileiro porque, criador do índice que mede o desenvolvimento humano adotado pela ONU, ele alterou a metodologia, o que acabou rebaixando a classificação do Brasil e melhorando a da Índia.
Não é o tipo de debate em que Sen entraria. Sua atenção está mais voltada para o resgate da ética no mundo da economia, tarefa que, ele sabe, não é fácil.



A OBRA
Sobre Ética e Economia - Amartya Sen. Tradução de Laura Teixeira Motta, com revisão técnica de Ricardo Doninelli Mendes. Companhia das Letras. 143 páginas. R$ 19.
www.companhiadasletras.com.br




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