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São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Discórdia sobre o Consenso de Washington

GESNER OLIVEIRA

Não há consenso acerca do Consenso de Washington. Nunca houve. Essa é a conclusão da leitura do novo livro de John Williamson, que há 13 anos usou essa expressão para descrever um programa de dez reformas para a América Latina.
Como toda expressão que pega, "Consenso de Washington" é usada em qualquer conversa social, com múltiplos significados. Fica à escolha do freguês. É muito comum empregá-la como sinônimo de política "neoliberal", adjetivo raivoso e carente de conteúdo. Na prática, serve como um rótulo para qualquer medida de caráter liberalizante, da privatização de estatais à reforma previdenciária.
Na verdade, o decálogo de Williamson incluía medidas gerais, como o redirecionamento dos gastos públicos, a desregulamentação e a austeridade fiscal, que poderiam ser apoiadas por um amplo espectro de forças políticas. Hoje em dia, nem o PT diverge de proposições desse tipo. Uma comparação fria entre o chamado Consenso de Washington e a política econômica do governo federal levaria à conclusão de que o PT no governo está à direita do Consenso de Washington.
Tampouco há identidade entre as políticas do FMI e o Consenso de Washington. A supervalorização do peso, que fazia parte do regime cambial argentino e no qual o FMI embarcou, não fazia parte do Consenso de Washington.
A bem da verdade, o remédio prescrito por Williamson no início dos anos 90 tinha várias contra-indicações. Mas, como sempre, a bula estava escrita com uma letra minúscula e cheia de expressões cifradas. O paciente não teve paciência ou não quis ler. Um alerta que deveria estar escrito em vermelho e em letras garrafais era o perigo da versão globalizada da doença holandesa por meio do dólar artificialmente barato.
Depois de mais de uma década de baixo crescimento no Brasil e na América Latina, é oportuno repensar e verificar o que deu errado. A nova agenda proposta por Williamson acrescenta quatro itens ao programa original. Em primeiro lugar, a proteção contra a sucessão de choques externos mediante a maior solidez da posição fiscal.
Em segundo lugar, a realização de reformas tão debatidas, mas não implementadas. O paciente reclama que o remédio não curou a doença, mas a receita não foi seguida à risca, quando não foi olimpicamente ignorada. Em alguns casos, o vidro continua cheio de comprimidos intocados.
O mercado de trabalho, por exemplo, continua com todos os vícios do corporativismo e do intervencionismo, em prejuízo do trabalhador e da produtividade do país. Em outros casos, como o do atual projeto de reforma tributária, a suposta mudança é um retrocesso.
Em terceiro lugar, propõe-se a execução das chamadas reformas de segunda geração, que envolvem a do Judiciário, a do sistema político e a do financiamento de longo prazo. A literatura recente sobre o papel das instituições no desenvolvimento é convincente. Não são possíveis melhores políticas públicas sem melhores instituições. É precisamente esse o foco das reformas de segunda geração, e daí sua virtude.
Nem mesmo coisas óbvias foram concretizadas na última década. Por exemplo, a regulação dos setores de infra-estrutura ainda patina na maioria dos países latino-americanos. Pois, sem um bom marco regulatório, a privatização não resulta em tarifas públicas razoáveis e melhores serviços nem em mais investimento.
Em quarto lugar, a maior ênfase na agenda social, com o objetivo de atacar de forma séria as questões da pobreza e da distribuição de renda indecente, por falta de outro termo.
Mas o Consenso de Washington ampliado ainda padece de vários males. Um deles é o de não ter se libertado da crença de que tudo pode mudar depois do dia D da reforma. Essa última é antes um processo permanente e necessariamente articulado a uma estratégia nacional de desenvolvimento.
Um outro mal é o problema da marca. Qualquer expressão com Washington no meio tem todas as chances de ser execrada. Quem sabe depois de a ditadura de Fidel Castro cair não será possível ter uma nova Carta de Havana.


Gesner Oliveira, 47, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.

Internet: www.gesneroliveira.com.br

E-mail - gesner@fgvsp.br


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