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RETRATO DO BRASIL
Miragens e o que ninguém reparou sobre a pobreza
João Wainer/Folha Imagem
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Antonio Gonçalves e Tereza Pascali, que moram na entrada de galeria subterrânea de esgoto |
LENA LAVINAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Feliz do país que pode ter um
IBGE a postos para, a cada
ano, trocar a foto do álbum e dar
uma boa mirada no que mudou.
Para melhor ou pior. No mundo
em desenvolvimento, isso não é lá
muito freqüente. Não que tenhamos sorte, temos competência.
A safra 2004 da Pnad (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE) parece captar um
bom momento. O percentual de
indigentes em queda e a confirmação de que a inflexão do índice
de Gini, iniciada entre 2001 e 2002,
se mantém, considerada a renda
familiar per capita.
Mas não é propriamente nova a
constatação de que tem havido redução do índice de Gini (medida
de desigualdade) no Brasil. Isso se
deve a uma conjugação de dois fatores: tem havido uma recuperação sistemática do salário mínimo
desde 1995 e tem caído o valor
médio da renda do trabalho no
mesmo período. O índice de desigualdade desde então passou de
0,600 para 0,555. Como o percentual de trabalhadores que ganha o
mínimo é proporcionalmente
maior nas regiões mais pobres
(Norte, Nordeste e Centro-Oeste),
esse duplo movimento contribuiu
para reduzir as desigualdades inter e intra-regionais de renda.
A valorização do salário mínimo também afetou positivamente
o bem-estar dos aposentados:
62,4% das aposentadorias e pensões pagas pelo INSS no Regime
Geral da Previdência Social correspondem a um mínimo, além
de quase 2,1 milhões de Benefícios
de Prestação Continuada (BPC,
dados de 2004).
Ou seja, em um quadro de queda da renda média, a recuperação
do piso básico dos rendimentos
dos trabalhadores, inativos e famílias carentes com presença de
idosos ou portadores de deficiência tem impacto favorável na redução, ainda que tímida, das nossas desigualdades.
Salário mínimo
Isso por si só mostra o quanto
uma política consistente e ambiciosa de revalorização do salário
mínimo pode se tornar uma alavanca na regulação da pobreza e
da desigualdade no país, atuando
de forma espetacular em conjunturas não-restritivas. Isto é, sob a
condição de que não prevaleçam
os argumentos daqueles que pregam a desvinculação dos benefícios assistenciais do piso do mínimo. Tal ponto de vista considera,
como assinala Edward Amadeo
em artigo no "Valor Econômico"
da semana passada, que "a aposentadoria dos trabalhadores da
área rural e dos idosos carentes,
que não contribuíram para a Previdência, em muitos casos paga
benefícios maiores que a renda do
aposentado quando estava na ativa" e isso gera déficit.
Esse é o ponto que não sai da
pauta e que levaria a uma desconstitucionalização do campo
dos direitos no país. Só para recordar, a lógica da redistribuição
é essa: quem contribuiu de forma
insuficiente ou não contribuiu
por ser pobre não deve ser condenado a viver nas mesmas condições em que sempre viveu.
Se o BPC é garantido a famílias
cuja renda familiar per capita é inferior a R$ 75 mensais, resta saber
quem teria condições de contribuir, com essa renda, em bases regulares ao INSS (R$ 60 mensais
para obtenção, no futuro, de um
salário mínimo). O percentual de
contribuintes aumenta no Brasil à
medida que se sobe na distribuição de renda, herança da nossa
heterogeneidade estrutural.
Inflação e crescimento
Mas o "vintage" 2004 da Pnad
revelou ainda outra conjugação,
dessa feita virtuosa: inflação em
queda e menor para famílias de
menor poder aquisitivo. O INPC
(deflator utilizado para renda familiar de até oito salários mínimos) ficou bem abaixo do IPCA
(usado para a faixa de renda até 40
mínimos): 5,97% contra 7,35%,
respectivamente. O PIB cresceu
4,9%, acima do garrote apregoado pelo Banco Central (3,5%),
ampliando a oferta de empregos,
embora aquém do que poderia ter
ocorrido.
O crescimento é arma poderosa
na redução do contingente de pobres. Que o diga a China, cujas altas taxas de crescimento econômico desde 1981 (10,6% ao ano
entre 1981 e 1990 e 9,6% entre 1990
e 2003) retiraram da miséria cerca
de 400 milhões. O índice de indigência (quem recebe menos de
US$ 1 por dia) caiu de 63,8% para
16,6%. Ou mesmo o Brasil, entre
1970 e 1980, quando o "milagre"
fez recuar o percentual de pobres
de 68,4% para 35,3%.
Portanto, o que nos traz de bom
a Pnad é mais ou menos o "script"
previsível do que se poderia esperar da economia brasileira, em
que o crescimento (logo, o combate à pobreza) tem sido sacrificado em favor da estabilidade. Essa
é a diminuição possível da desigualdade com o crescimento medíocre que temos tido. Resta saber, além da política macroeconômica, o que se tem feito da redistribuição pela via até agora
desprezada da política social.
Há quem diga que ninguém pode ser contra a política social. Seria como afirmar que ninguém
pode ser contra a política em geral, seja ela econômica ou industrial. Mas a pertinência da pergunta é outra: de que política estamos falando, em função do quantum e da qualidade da distribuição incentivados. Pois essa é a razão primeira da política social:
promover aquilo que o mercado
não faz -eqüidade horizontal,
erradicação da pobreza e superação da exclusão social.
O quadro acima mostra a variação do número de pobres no período entre 2001 e 2004, considerando três linhas de pobreza:
1) Que considera como pobres
aqueles de renda familiar per capita igual ou inferior a 40% da
renda per capita mediana;
2) Que considera como pobres
quem recebe 1/4 de salário mínimo, patamar para habilitação ao
nosso mais importante benefício
assistencial, o BPC (Benefício de
Prestação Continuada);
3) A linha de pobreza para a habilitação ao Bolsa-Família.
Observa-se, em todos os casos,
redução do índice de pobreza e de
indigência, bem como do número
absoluto de pobres, inclusive na
linha de pobreza derivada do salário mínimo, que registrou elevação real no período. A tendência
de queda no contingente de pobres mostra-se inequívoca e consistente. Isso é muito bom.
Mais gasto social
Melhor ainda é constatar que
ocorreu um aumento importante
do gasto social per capita nas
ações voltadas para os grupos
mais carentes. Segundo documento da Secretaria de Política
Econômica, o gasto social voltado
para ações no campo da Assistência Social somou, em valores correntes de 2004, R$ 16,2 bilhões,
contra R$ 8,5 bilhões em 2001.
Com a queda do número de pobres e o aumento do gasto voltado
para a população mais carente (só
transferências diretas de renda)
ocorre forçosamente um aumento no gasto social per capita destinado aos mais pobres.
Claro que seria necessário estimar as despesas com os custos administrativos para precisar de
quanto, de fato, é repassado às famílias mais pobres, sendo ainda
pressuposto de que a focalização
seja perfeita. O presente exercício
é aproximativo, e o quadro real
tende a ser menos expressivo.
Dinheiro dos emigrantes
Mas, a fim de refletir o que está
em jogo, é preciso considerar alguns poréns. Em 2004, segundo
estudos do BID, os brasileiros que
foram para o exterior em busca de
melhores oportunidades de vida e
escapar da pobreza remeteram ao
Brasil US$ 5,9 bilhões, cerca de
R$ 17,1 bilhões líquidos. Isso é um
valor ligeiramente superior ao
que o governo federal gastou com
transferências diretas aos mais
pobres. Resumidamente, o esforço feito no plano privado pelas famílias é equivalente ao esforço redistributivo do governo. De resto,
pode-se supor que tais remessas,
pelo seu volume, contribuíram
para reduzir em parte o fluxo de
pessoas em direção à pobreza.
O mérito na redução dos índices
de pobreza no período assinalado
deve ser no mínimo repartido entre governo e famílias, não cabendo exclusivamente às políticas sociais. Estas permanecem aquém
do que é indispensável para que a
redução das desigualdades e da
pobreza avance num ritmo compatível com o passivo acumulado.
No ritmo presente, vamos levar
décadas, e muitas, para zerar o diferencial.
É preciso ressaltar ainda que as
deduções fiscais que beneficiaram
as classes média e alta relativas a
despesas com educação e saúde
(dados do Imposto de Renda de
2004) representaram 45% do gasto com o Bolsa-Família (R$ 5,799
bilhões). Logo, continua-se redistribuindo renda para os menos
pobres e para os mais pobres, embora as necessidades sejam radicalmente distintas.
A estrutura fiscal e tributária
continua regressiva e fortemente
concentradora. Quase tudo que se
faz em matéria de política social se
restringe a transferir renda aos
mais pobres (e menos pobres),
enquanto o investimento social é
inexpressivo e insuficiente para
inverter o quadro de iniqüidades.
O dinheirinho, pouco, que chega às mãos das famílias mais pobres tem que render e muito para
dar conta do que há a pagar para
além do consumo corrente, já que
bens e serviços públicos são escassos e de má qualidade, portanto
reprodutores da desigualdade e
da dualidade social.
As transferências monetárias de
renda aos mais pobres são indispensáveis e devem ter perfil redistributivo para não se restringirem
a minorar falhas de mercado
agravadas por níveis elevados de
exclusão social. Mas nem por isso
a reprodução social deve ficar
quase exclusivamente nas costas
das famílias. São elas que seguem
compensando as omissões da
nossa política de proteção social.
O caminho percorrido até agora
mostra algum progresso, mas nada que possa contestar aquilo que
nossos olhos miram todos os dias
nas ruas e nas manchetes dos jornais. O risco dos números é fazer
das miradas miragens. Desenvolvimento é a ascensão conjunta de
toda uma nação, dando as costas
ao empobrecimento.
Lena Lavinas é economista e professora
do Instituto de Economia da UFRJ
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