São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

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RETRATO DO BRASIL

Miragens e o que ninguém reparou sobre a pobreza

João Wainer/Folha Imagem
Antonio Gonçalves e Tereza Pascali, que moram na entrada de galeria subterrânea de esgoto


LENA LAVINAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Feliz do país que pode ter um IBGE a postos para, a cada ano, trocar a foto do álbum e dar uma boa mirada no que mudou. Para melhor ou pior. No mundo em desenvolvimento, isso não é lá muito freqüente. Não que tenhamos sorte, temos competência.
A safra 2004 da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, do IBGE) parece captar um bom momento. O percentual de indigentes em queda e a confirmação de que a inflexão do índice de Gini, iniciada entre 2001 e 2002, se mantém, considerada a renda familiar per capita.
Mas não é propriamente nova a constatação de que tem havido redução do índice de Gini (medida de desigualdade) no Brasil. Isso se deve a uma conjugação de dois fatores: tem havido uma recuperação sistemática do salário mínimo desde 1995 e tem caído o valor médio da renda do trabalho no mesmo período. O índice de desigualdade desde então passou de 0,600 para 0,555. Como o percentual de trabalhadores que ganha o mínimo é proporcionalmente maior nas regiões mais pobres (Norte, Nordeste e Centro-Oeste), esse duplo movimento contribuiu para reduzir as desigualdades inter e intra-regionais de renda.
A valorização do salário mínimo também afetou positivamente o bem-estar dos aposentados: 62,4% das aposentadorias e pensões pagas pelo INSS no Regime Geral da Previdência Social correspondem a um mínimo, além de quase 2,1 milhões de Benefícios de Prestação Continuada (BPC, dados de 2004).
Ou seja, em um quadro de queda da renda média, a recuperação do piso básico dos rendimentos dos trabalhadores, inativos e famílias carentes com presença de idosos ou portadores de deficiência tem impacto favorável na redução, ainda que tímida, das nossas desigualdades.

Salário mínimo
Isso por si só mostra o quanto uma política consistente e ambiciosa de revalorização do salário mínimo pode se tornar uma alavanca na regulação da pobreza e da desigualdade no país, atuando de forma espetacular em conjunturas não-restritivas. Isto é, sob a condição de que não prevaleçam os argumentos daqueles que pregam a desvinculação dos benefícios assistenciais do piso do mínimo. Tal ponto de vista considera, como assinala Edward Amadeo em artigo no "Valor Econômico" da semana passada, que "a aposentadoria dos trabalhadores da área rural e dos idosos carentes, que não contribuíram para a Previdência, em muitos casos paga benefícios maiores que a renda do aposentado quando estava na ativa" e isso gera déficit.
Esse é o ponto que não sai da pauta e que levaria a uma desconstitucionalização do campo dos direitos no país. Só para recordar, a lógica da redistribuição é essa: quem contribuiu de forma insuficiente ou não contribuiu por ser pobre não deve ser condenado a viver nas mesmas condições em que sempre viveu.
Se o BPC é garantido a famílias cuja renda familiar per capita é inferior a R$ 75 mensais, resta saber quem teria condições de contribuir, com essa renda, em bases regulares ao INSS (R$ 60 mensais para obtenção, no futuro, de um salário mínimo). O percentual de contribuintes aumenta no Brasil à medida que se sobe na distribuição de renda, herança da nossa heterogeneidade estrutural.

Inflação e crescimento
Mas o "vintage" 2004 da Pnad revelou ainda outra conjugação, dessa feita virtuosa: inflação em queda e menor para famílias de menor poder aquisitivo. O INPC (deflator utilizado para renda familiar de até oito salários mínimos) ficou bem abaixo do IPCA (usado para a faixa de renda até 40 mínimos): 5,97% contra 7,35%, respectivamente. O PIB cresceu 4,9%, acima do garrote apregoado pelo Banco Central (3,5%), ampliando a oferta de empregos, embora aquém do que poderia ter ocorrido.
O crescimento é arma poderosa na redução do contingente de pobres. Que o diga a China, cujas altas taxas de crescimento econômico desde 1981 (10,6% ao ano entre 1981 e 1990 e 9,6% entre 1990 e 2003) retiraram da miséria cerca de 400 milhões. O índice de indigência (quem recebe menos de US$ 1 por dia) caiu de 63,8% para 16,6%. Ou mesmo o Brasil, entre 1970 e 1980, quando o "milagre" fez recuar o percentual de pobres de 68,4% para 35,3%.
Portanto, o que nos traz de bom a Pnad é mais ou menos o "script" previsível do que se poderia esperar da economia brasileira, em que o crescimento (logo, o combate à pobreza) tem sido sacrificado em favor da estabilidade. Essa é a diminuição possível da desigualdade com o crescimento medíocre que temos tido. Resta saber, além da política macroeconômica, o que se tem feito da redistribuição pela via até agora desprezada da política social.
Há quem diga que ninguém pode ser contra a política social. Seria como afirmar que ninguém pode ser contra a política em geral, seja ela econômica ou industrial. Mas a pertinência da pergunta é outra: de que política estamos falando, em função do quantum e da qualidade da distribuição incentivados. Pois essa é a razão primeira da política social: promover aquilo que o mercado não faz -eqüidade horizontal, erradicação da pobreza e superação da exclusão social.
O quadro acima mostra a variação do número de pobres no período entre 2001 e 2004, considerando três linhas de pobreza:
1) Que considera como pobres aqueles de renda familiar per capita igual ou inferior a 40% da renda per capita mediana;
2) Que considera como pobres quem recebe 1/4 de salário mínimo, patamar para habilitação ao nosso mais importante benefício assistencial, o BPC (Benefício de Prestação Continuada);
3) A linha de pobreza para a habilitação ao Bolsa-Família.
Observa-se, em todos os casos, redução do índice de pobreza e de indigência, bem como do número absoluto de pobres, inclusive na linha de pobreza derivada do salário mínimo, que registrou elevação real no período. A tendência de queda no contingente de pobres mostra-se inequívoca e consistente. Isso é muito bom.

Mais gasto social
Melhor ainda é constatar que ocorreu um aumento importante do gasto social per capita nas ações voltadas para os grupos mais carentes. Segundo documento da Secretaria de Política Econômica, o gasto social voltado para ações no campo da Assistência Social somou, em valores correntes de 2004, R$ 16,2 bilhões, contra R$ 8,5 bilhões em 2001.
Com a queda do número de pobres e o aumento do gasto voltado para a população mais carente (só transferências diretas de renda) ocorre forçosamente um aumento no gasto social per capita destinado aos mais pobres.
Claro que seria necessário estimar as despesas com os custos administrativos para precisar de quanto, de fato, é repassado às famílias mais pobres, sendo ainda pressuposto de que a focalização seja perfeita. O presente exercício é aproximativo, e o quadro real tende a ser menos expressivo.

Dinheiro dos emigrantes
Mas, a fim de refletir o que está em jogo, é preciso considerar alguns poréns. Em 2004, segundo estudos do BID, os brasileiros que foram para o exterior em busca de melhores oportunidades de vida e escapar da pobreza remeteram ao Brasil US$ 5,9 bilhões, cerca de R$ 17,1 bilhões líquidos. Isso é um valor ligeiramente superior ao que o governo federal gastou com transferências diretas aos mais pobres. Resumidamente, o esforço feito no plano privado pelas famílias é equivalente ao esforço redistributivo do governo. De resto, pode-se supor que tais remessas, pelo seu volume, contribuíram para reduzir em parte o fluxo de pessoas em direção à pobreza.
O mérito na redução dos índices de pobreza no período assinalado deve ser no mínimo repartido entre governo e famílias, não cabendo exclusivamente às políticas sociais. Estas permanecem aquém do que é indispensável para que a redução das desigualdades e da pobreza avance num ritmo compatível com o passivo acumulado. No ritmo presente, vamos levar décadas, e muitas, para zerar o diferencial.
É preciso ressaltar ainda que as deduções fiscais que beneficiaram as classes média e alta relativas a despesas com educação e saúde (dados do Imposto de Renda de 2004) representaram 45% do gasto com o Bolsa-Família (R$ 5,799 bilhões). Logo, continua-se redistribuindo renda para os menos pobres e para os mais pobres, embora as necessidades sejam radicalmente distintas.
A estrutura fiscal e tributária continua regressiva e fortemente concentradora. Quase tudo que se faz em matéria de política social se restringe a transferir renda aos mais pobres (e menos pobres), enquanto o investimento social é inexpressivo e insuficiente para inverter o quadro de iniqüidades.
O dinheirinho, pouco, que chega às mãos das famílias mais pobres tem que render e muito para dar conta do que há a pagar para além do consumo corrente, já que bens e serviços públicos são escassos e de má qualidade, portanto reprodutores da desigualdade e da dualidade social.
As transferências monetárias de renda aos mais pobres são indispensáveis e devem ter perfil redistributivo para não se restringirem a minorar falhas de mercado agravadas por níveis elevados de exclusão social. Mas nem por isso a reprodução social deve ficar quase exclusivamente nas costas das famílias. São elas que seguem compensando as omissões da nossa política de proteção social.
O caminho percorrido até agora mostra algum progresso, mas nada que possa contestar aquilo que nossos olhos miram todos os dias nas ruas e nas manchetes dos jornais. O risco dos números é fazer das miradas miragens. Desenvolvimento é a ascensão conjunta de toda uma nação, dando as costas ao empobrecimento.


Lena Lavinas é economista e professora do Instituto de Economia da UFRJ


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