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VISÃO DE FORA
O mercado e as superestruturas reguladoras
MERTON H. MILLER
Argumenta-se que os mercados financeiros (e seus filhotes,
os derivativos) devem sofrer
restrições porque são o motivo
de os governos perderem o controle de seus rumos em todos os
países. Hoje, nem o presidente
nem o Congresso decidiriam a
política econômica, mas sim os
mercados financeiros.
Talvez realmente seja assim
num sentido metafórico, mas
insisto: os governos nunca tiveram tanto controle como eles
achavam que tinham. As ondas
emanando das inovações no
mercado livre da iniciativa privada constantemente ameaçam
derrubar as superestruturas reguladoras, erigidas para proteger principalmente interesses
particulares, incluindo os dos
próprios reguladores.
Às vezes, as superestruturas
são derrubadas em um crash,
como foi o caso da URSS. Mais
frequentemente há um lento
processo de desgaste progressivo
-em última instância, tão eficiente como o crash.
O que melhor exemplifica esse
processo é o caso dos chamados
"swaps", que já se tornaram o
principal produto no mercado
de derivativos, num montante
de mais de US$ 80 trilhões. Mas
esse valor é teórico; não é o caso
de se assustar com grandes números. A verdadeira exposição
ao risco é centenas de vezes menor.
Evidentemente, não se afirma
que não há perdas no mercado
de "swaps". Mas é um conto de
fadas afirmar que tais perdas,
diretamente ou pela via do contágio, podem facilmente levar a
um colapso financeiro global.
Essa história é inventada pelos
reguladores para justificar sua
existência.
A história demonstra que, se
há um colapso financeiro, é
consequência não de uma implosão espontânea nos mercados, mas de políticas internacionais erradas dos próprios reguladores, como fizeram o Federal Reserve no início dos anos
30, nos EUA, e mais recentemente o Banco do Japão.
Os mercados de "swaps" são
relativamente recentes e surgiram da necessidade de contornar regulamentos intervencionistas e mal pensados. Até os
anos 60 ou 70, a maioria dos
países da Europa Ocidental
manteve sistemas elaborados de
controles sobre os fluxos de
câmbio. Houve um teto para o
montante de divisas de outros
países que seus cidadãos podiam legalmente adquirir para
viajar. Em parte, a intenção
desses controles foi prevenir a
fuga de capitais. Houve também a intenção de manter a
cotação da moeda nacional em
um nível muito acima do que
seria justificado pelos fundamentos da economia.
De todos os sistemas de controles de divisas, nenhum foi
tão rígido e intervencionista como o do Reino Unido. No fim
dos anos 70, um cidadão britânico anônimo disse: "Chega!
Não suporto mais viajar com o
bolso vazio!". Evidentemente,
ele não iria levar dinheiro ilegalmente. O que ele fez foi arranjar uma troca de férias com
algum amigo francês, que podemos chamar Henri. Henri gozaria de 15 dias em um apartamento londrino, e o dinheiro
para os gastos seria deixado pelo dono, discretamente, em cima da geladeira.
Foi um bom trato para Henri
também, porque a França da
mesma forma impôs um rígido
controle sobre a saída de divisas. Em troca das férias em Londres, Henri ofereceria as mesmas facilidades em Paris a seu
amigo inglês, a quem podemos
chamar de Clive. Se Clive fosse
um cidadão qualquer, a história da troca de férias terminaria nisso. No entanto Clive era
um banqueiro na City de Londres e entendeu que esse sistema tinha potencial para ser generalizado.
As empresas britânicas foram
proibidas pelos regulamentos
de seu governo de adquirir os
dólares de que necessitavam
para comprar empresas norte-americanas ou montar filiais
nos EUA. Os mesmos regulamentos proibiram as empresas
norte-americanas de adquirir
as libras esterlinas de que necessitavam para seus investimentos no Reino Unido.
Então, foi um passo muito
simples e óbvio quando duas
empresas, uma inglesa e uma
norte-americana, fizeram um
acordo para que as moedas de
uma ficassem à disposição da
outra e vice-versa; houve uma
troca ("swap") de moedas. Tudo
isso foi muito simples, mas foi
daí que surgiu a enorme indústria moderna dos "swaps", que
acabou, no curso de seu crescimento, minando praticamente
todos os controles sobre fluxos
de divisas, que foram a causa de
sua origem.
Os "swaps" fornecem um
exemplo muito claro de como a
inovação financeira pode servir
para minar a regulamentação
opressiva dos governos.
Alguém poderia concluir disso
que a melhor maneira de garantir mais inovação financeira
é manter ou até mesmo ampliar
o papel, já grande, do Estado
diante do mercado na orientação do emprego dos recursos
econômicos da sociedade.
É verdade que muitas inovações na história surgiram precisamente para contornar algum
tipo de restrição reguladora. No
entanto seria absurdo confiar
nesse processo -seria como
aquele personagem da piada
que gostou tanto de dar marteladas em sua própria cabeça
porque a sensação de alívio ao
parar de martelar era muito
boa. Devemos encontrar uma
forma melhor de manter um
equilíbrio eficiente entre soluções de mercado e soluções governamentais.
Sabemos sim, ao menos em
princípio, onde se devem demarcar os limites do setor público. Na sala de aula, é fácil
demonstrar que não deve haver
intervenção do governo, a não
ser que fique comprovado claramente que os benefícios de tal
intervenção superam os custos
sociais. Mas como podemos fazer com que os governos e os
eleitores concordem em obedecer a tal princípio? E como podemos demonstrar, de maneira
que todos se convençam, que
determinada política intervencionista seria um fracasso? Como mostrar que as atuais políticas não satisfazem o critério de
contribuir para o bem-estar da
nação?
Mesmo no setor privado, fica
difícil às vezes detectar políticas
falhas, mas ao menos o resultado em termos de lucros ou perdas obriga todos a aceitar as
restrições orçamentárias.
Como, então, elevar o bem-estar redistribuindo a responsabilidade da alocação de recursos
mais para o setor privado e menos para setores governamentais e políticos?
A resposta tem que incluir paciência e perseverança, principalmente nas áreas nas quais
ficaria muito custoso compensar aqueles que têm direitos adquiridos e que hoje se beneficiam da generosidade do governo. Temos um velho refrão que
diz que é mais fácil não jogar
um osso para um cachorro do
que tirar o osso da boca de um.
Parece que o presidente Jacques
Chirac está aprendendo essa lição penosamente.
Para conseguir o que nós, economistas, chamamos de "reforma Pareto" -uma mudança
que não é negativa para ninguém, mas melhora a posição
de alguns- você tem que dar
aos perdedores algo em troca.
Senão, promove-se uma guerra
entre as classes.
Não é sempre possível pagar
em dinheiro para compensar o
fim desses direitos. Portanto a
melhor forma (talvez a única) é
se todos os demais setores concordarem ao mesmo tempo em
abrir mão de seus benefícios favoritos. Essa foi a lógica subjacente às reformas estruturais há
alguns anos na Argentina. A
idéia foi uma nova redação, digamos, do contrato social, em
troca do compromisso de reduzir a inflação e não desvalorizar a moeda.
Certamente é difícil uma reorientação moral e política desse
tamanho. Mas difícil não quer
dizer impossível. É de esperar
que os ambientes intelectuais
mudem sempre que os defensores do livre mercado continuarem a pressionar. Vai ser necessário muito discurso antes que
possamos substituir as supostas
soluções coercitivas e estatistas
para nossas preocupações econômicas por soluções voluntárias, impulsionadas pelo mercado.
Tradução de
Thomas Nerney
Quem é MERTON H. MILLER
norte-americano, 75 anos, doutor em economia pela Universidade Johns Hopkins, professor emérito de finanças da Graduate School of
Business da Universidade de Chicago (EUA).
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