São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VISÃO DE FORA
O mercado e as superestruturas reguladoras

MERTON H. MILLER
Argumenta-se que os mercados financeiros (e seus filhotes, os derivativos) devem sofrer restrições porque são o motivo de os governos perderem o controle de seus rumos em todos os países. Hoje, nem o presidente nem o Congresso decidiriam a política econômica, mas sim os mercados financeiros.
Talvez realmente seja assim num sentido metafórico, mas insisto: os governos nunca tiveram tanto controle como eles achavam que tinham. As ondas emanando das inovações no mercado livre da iniciativa privada constantemente ameaçam derrubar as superestruturas reguladoras, erigidas para proteger principalmente interesses particulares, incluindo os dos próprios reguladores.
Às vezes, as superestruturas são derrubadas em um crash, como foi o caso da URSS. Mais frequentemente há um lento processo de desgaste progressivo -em última instância, tão eficiente como o crash.
O que melhor exemplifica esse processo é o caso dos chamados "swaps", que já se tornaram o principal produto no mercado de derivativos, num montante de mais de US$ 80 trilhões. Mas esse valor é teórico; não é o caso de se assustar com grandes números. A verdadeira exposição ao risco é centenas de vezes menor.
Evidentemente, não se afirma que não há perdas no mercado de "swaps". Mas é um conto de fadas afirmar que tais perdas, diretamente ou pela via do contágio, podem facilmente levar a um colapso financeiro global. Essa história é inventada pelos reguladores para justificar sua existência.
A história demonstra que, se há um colapso financeiro, é consequência não de uma implosão espontânea nos mercados, mas de políticas internacionais erradas dos próprios reguladores, como fizeram o Federal Reserve no início dos anos 30, nos EUA, e mais recentemente o Banco do Japão.
Os mercados de "swaps" são relativamente recentes e surgiram da necessidade de contornar regulamentos intervencionistas e mal pensados. Até os anos 60 ou 70, a maioria dos países da Europa Ocidental manteve sistemas elaborados de controles sobre os fluxos de câmbio. Houve um teto para o montante de divisas de outros países que seus cidadãos podiam legalmente adquirir para viajar. Em parte, a intenção desses controles foi prevenir a fuga de capitais. Houve também a intenção de manter a cotação da moeda nacional em um nível muito acima do que seria justificado pelos fundamentos da economia.
De todos os sistemas de controles de divisas, nenhum foi tão rígido e intervencionista como o do Reino Unido. No fim dos anos 70, um cidadão britânico anônimo disse: "Chega! Não suporto mais viajar com o bolso vazio!". Evidentemente, ele não iria levar dinheiro ilegalmente. O que ele fez foi arranjar uma troca de férias com algum amigo francês, que podemos chamar Henri. Henri gozaria de 15 dias em um apartamento londrino, e o dinheiro para os gastos seria deixado pelo dono, discretamente, em cima da geladeira.
Foi um bom trato para Henri também, porque a França da mesma forma impôs um rígido controle sobre a saída de divisas. Em troca das férias em Londres, Henri ofereceria as mesmas facilidades em Paris a seu amigo inglês, a quem podemos chamar de Clive. Se Clive fosse um cidadão qualquer, a história da troca de férias terminaria nisso. No entanto Clive era um banqueiro na City de Londres e entendeu que esse sistema tinha potencial para ser generalizado.
As empresas britânicas foram proibidas pelos regulamentos de seu governo de adquirir os dólares de que necessitavam para comprar empresas norte-americanas ou montar filiais nos EUA. Os mesmos regulamentos proibiram as empresas norte-americanas de adquirir as libras esterlinas de que necessitavam para seus investimentos no Reino Unido.
Então, foi um passo muito simples e óbvio quando duas empresas, uma inglesa e uma norte-americana, fizeram um acordo para que as moedas de uma ficassem à disposição da outra e vice-versa; houve uma troca ("swap") de moedas. Tudo isso foi muito simples, mas foi daí que surgiu a enorme indústria moderna dos "swaps", que acabou, no curso de seu crescimento, minando praticamente todos os controles sobre fluxos de divisas, que foram a causa de sua origem.
Os "swaps" fornecem um exemplo muito claro de como a inovação financeira pode servir para minar a regulamentação opressiva dos governos.
Alguém poderia concluir disso que a melhor maneira de garantir mais inovação financeira é manter ou até mesmo ampliar o papel, já grande, do Estado diante do mercado na orientação do emprego dos recursos econômicos da sociedade.
É verdade que muitas inovações na história surgiram precisamente para contornar algum tipo de restrição reguladora. No entanto seria absurdo confiar nesse processo -seria como aquele personagem da piada que gostou tanto de dar marteladas em sua própria cabeça porque a sensação de alívio ao parar de martelar era muito boa. Devemos encontrar uma forma melhor de manter um equilíbrio eficiente entre soluções de mercado e soluções governamentais.
Sabemos sim, ao menos em princípio, onde se devem demarcar os limites do setor público. Na sala de aula, é fácil demonstrar que não deve haver intervenção do governo, a não ser que fique comprovado claramente que os benefícios de tal intervenção superam os custos sociais. Mas como podemos fazer com que os governos e os eleitores concordem em obedecer a tal princípio? E como podemos demonstrar, de maneira que todos se convençam, que determinada política intervencionista seria um fracasso? Como mostrar que as atuais políticas não satisfazem o critério de contribuir para o bem-estar da nação?
Mesmo no setor privado, fica difícil às vezes detectar políticas falhas, mas ao menos o resultado em termos de lucros ou perdas obriga todos a aceitar as restrições orçamentárias.
Como, então, elevar o bem-estar redistribuindo a responsabilidade da alocação de recursos mais para o setor privado e menos para setores governamentais e políticos?
A resposta tem que incluir paciência e perseverança, principalmente nas áreas nas quais ficaria muito custoso compensar aqueles que têm direitos adquiridos e que hoje se beneficiam da generosidade do governo. Temos um velho refrão que diz que é mais fácil não jogar um osso para um cachorro do que tirar o osso da boca de um. Parece que o presidente Jacques Chirac está aprendendo essa lição penosamente.
Para conseguir o que nós, economistas, chamamos de "reforma Pareto" -uma mudança que não é negativa para ninguém, mas melhora a posição de alguns- você tem que dar aos perdedores algo em troca. Senão, promove-se uma guerra entre as classes.
Não é sempre possível pagar em dinheiro para compensar o fim desses direitos. Portanto a melhor forma (talvez a única) é se todos os demais setores concordarem ao mesmo tempo em abrir mão de seus benefícios favoritos. Essa foi a lógica subjacente às reformas estruturais há alguns anos na Argentina. A idéia foi uma nova redação, digamos, do contrato social, em troca do compromisso de reduzir a inflação e não desvalorizar a moeda.
Certamente é difícil uma reorientação moral e política desse tamanho. Mas difícil não quer dizer impossível. É de esperar que os ambientes intelectuais mudem sempre que os defensores do livre mercado continuarem a pressionar. Vai ser necessário muito discurso antes que possamos substituir as supostas soluções coercitivas e estatistas para nossas preocupações econômicas por soluções voluntárias, impulsionadas pelo mercado.


Tradução de Thomas Nerney
Quem é MERTON H. MILLER

norte-americano, 75 anos, doutor em economia pela Universidade Johns Hopkins, professor emérito de finanças da Graduate School of Business da Universidade de Chicago (EUA).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.