São Paulo, domingo, 5 de julho de 1998

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Falácias de devedor

LUCIANO COUTINHO
Sem desmerecer o sucesso do Plano Real na derrubada da inflação para níveis baixíssimos, quatro anos depois de iniciado não conseguiu fixar uma trajetória sustentável para o crescimento da economia brasileira. A nossa vulnerabilidade é inconteste e se origina primordialmente do elevado déficit externo (lucros, juros, fretes, gastos dos turistas brasileiros), ao qual se acresce o déficit comercial. No ano passado o rombo totalizou US$ 33,4 bilhões (4,2% do PIB) e em 1998, apesar de alguma redução no desequilíbrio comercial, o déficit em transações correntes com o exterior deve ficar entre US$ 32 e 33 bilhões (4,0% do PIB).
Com esse volume absoluto e relativo de dependência de novos capitais/financiamentos estrangeiros, sem contar a rolagem das obrigações acumuladas, o governo brasileiro fica à mercê da tirania dos mercados financeiros internacionais. Fica obrigado a dançar a música por eles determinada (e.g. privatizar as empresas públicas sem critérios de racionalidade e de soberania) e nos momentos de turbulência vê-se forçado a sacrificar o emprego, a saúde das empresas, o crescimento da economia -colocando nos píncaros a taxa de juros.
Que inveja da China! Com as suas contas externas equilibradas e reservas de divisas sólidas, o seu banco central pôde reduzir nesta semana as taxas de juros de curto e de médio prazos para empréstimo às empresas, respectivamente de 7,02% a.a. para 6,57% a.a. e de 7,92% a.a. para 6.93% a.a. Enquanto isso, o Brasil fica prisioneiro de uma taxa de juros básica hoje em 21% a.a. e que dificilmente poderá se reduzir muito abaixo de 20% a.a. no ano que vem. Registre-se que essa taxa básica chega às pequenas e médias empresas, via bancos, custando entre 60% e 100% a.a. para um simples desconto de duplicatas!
Seria urgente que o governo agisse com muita determinação para reduzir os déficits externo e interno o quanto mais rapidamente possível. Isto implicaria controlar mais as importações de bens finais de consumo e os gastos de turismo no exterior. Exigiria uma política mais incisiva de apoio à exportação. Requereria seriedade -e não populismo eleiçoeiro- no controle dos gastos públicos. Com um programa firme de contenção dos dois déficits seria possível ir diminuindo consistentemente a taxa de juros e esse seria um processo virtuoso, pois ajudaria a acelerar a redução do déficit fiscal cujo componente principal são os próprios encargos com juros sobre a dívida pública (de 5,2% do PIB em 97 e de 6,2% do PIB previstos para 98).
Ao contrário, ao invés de enfrentar os verdadeiros desafios, o governo FHC refugia-se em falácias.
1) Vincula a redução dos juros e do déficit público à implementação das reformas administrativa, previdenciária e tributária e culpa o Congresso Nacional pelo atraso destas. Esconde: a) que sempre teve maioria folgada no Parlamento; b) que não foi capaz de preparar os seus projetos de reforma em tempo hábil (até agora, por exemplo, não há projeto definido para a reforma tributária); c) que não é relevante, a curto prazo, o impacto das reformas sobre o déficit público.
2) Pretende debitar o elevado nível de desemprego aos processos de reestruturação empresarial decorrentes da "globalização" e ao efeito dos encargos trabalhistas, para eludir o fato de que este resulta, principalmente, do ritmo medíocre e irregular de crescimento da economia.
3) Busca camuflar as verdadeiras razões que o levam a privatizar de forma irracional o Sistema Telebrás, argüindo que o modelo proposto maximizaria a concorrência e, portanto, beneficiaria o consumidor -desviando a discussão da premência com que vem sendo obrigado a vender, de forma a agradar aos mercados e financiar parte dos déficits interno e externo.
Com relação a este ponto cabem mais esclarecimentos, pois, carente de argumentos, o sr. ministro das Comunicações bate abaixo da linha da cintura e o governo se lança em uma falaciosa campanha publicitária: a) não tem fundamento a hipótese de que a fragmentação do sistema brasileiro de telefonia fixa em três empresas regionais acirrará a competição no que tange à rede local e às chamadas locais. Uma fonte insuspeita, a OECD, em relatório que examina a competição local em telecomunicações, constata: "Depois de mais de uma década de introdução da competição nos sistemas de telecomunicações dos países da OECD, mais de 99,6% de todas as linhas locais ainda são supridas pelos antigos operadores públicos"(*). A fragmentação não aumentou de forma significativa a competição local, nem nos EUA (onde as "baby bells" estão se reconcentrando) nem na Inglaterra, nem nos demais países.
Portanto, é falsa a proposição de que a fragmentação do sistema se justificaria em virtude dos benefícios que traria para os consumidores; b) é também falacioso o argumento de que a privatização, da forma como será feita, criará milhões de empregos, dado que uma privatização alternativa -na forma como já propus nesta coluna (a Brasil Telecom)- poderia gerar ainda mais empregos. Com efeito, além dos empregos em serviços que o governo contabiliza, também criar-se-iam mais empregos na produção e desenvolvimento local de equipamentos, sistemas e softwares, empregos esses -mais nobres- que certamente não florescerão se as três empresas de telefonia fixa e a Embratel vierem a ser controladas por operadoras estrangeiras. Nesse caso, esses empregos serão criados no exterior. Mais uma falácia, portanto.
A proposta de privatizar sob a forma de uma grande empresa nacional -a Brasil Telecom- é melhor sob todos os ângulos: vale mais, é mais eficiente por maximizar as economias de escala e de escopo, assegura a pesquisa técnica e a produção no país, não provoca sangria cambial e resguarda a soberania nacional. Quanto à competição, há meios mais inteligentes para promovê-la: "empresas-espelho" devem ser criadas e poderão concorrer efetivamente no mercado de ligações interurbanas e internacionais, enquanto no plano local a concorrência logo virá, e forte, por parte de novos operadores baseados nos cabos de TV, como já vem ocorrendo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Não é à toa que, na semana passada, a ATT investiu US$ 48 bilhões na compra da maior operadora de TV a cabo dos EUA, a TCL.
Repito o quão grave é o equívoco que está sendo cometido. Corre-se o risco de desnacionalizar todo o Sistema Telebrás, de gerar um polpudo fluxo de remessa de lucros e dividendos por anos a fio, de desmantelar a preciosa base instalada de desenvolvimento tecnológico no país (CPqD) e de dificultar seriamente a produção local de equipamentos. Tudo isso para arrecadar já recursos que desaparecerão no sorvedouro da conta dos juros internos e externos.


(*) Organization for Economic Co-operation and Development (OECD) - "Local Telecommunication Competition: Developments and Policy Issues", Paris, 1996, pág. 23

Luciano Coutinho, 50, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).



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