São Paulo, quarta, 5 de agosto de 1998

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VISÃO DE FORA
A volatilidade de mercado e a dívida externa

MICHAEL PETTIS

Ao longo dos últimos 200 anos os países latino-americanos vêm estruturando os seus passivos externos de modo que se eleva o nível de volatilidade, já enorme, que é até uma característica de seu desempenho econômico. Mas, ao aumentar a volatilidade, esses países aumentam a possibilidade de que a qualquer momento um choque externo possa levar as suas econômicas a algum tipo de quebra.
Surpreende que isso tem sido geralmente ignorado no debate sobre as causas e consequências da recente crise financeira experimentada pelos países emergentes.
Começamos do início. As economias emergentes são muito mais voláteis, sejam os Estados Unidos no século 19, o Japão no pós-guerra, ou o Brasil nos dias de hoje. São -quase por definição- mais voláteis que os países mais avançados. Há três principais motivos para isso.
Em primeiro lugar, os mercados financeiros internos estão estruturados de modo ineficiente em torno de crédito de curto prazo ou a taxas flutuantes e, portanto, os choques ou as mudanças nas expectativas -na inflação, na liquidez, ou na disposição em correr risco- são transmitidos imediatamente à economia real por meio dos mercados financeiros.
Em segundo lugar, o setor exportador é geralmente dominado pela produção de commodities e produtos industriais de baixo teor tecnológico, com preços altamente sensíveis às variações na oferta ou na procura global. Portanto são impactados inesperadamente pelas altas e baixas dos preços internacionais. Finalmente, as economias emergentes são extremamente sensíveis aos fluxos internacionais de capital, e, por meio de mudanças nesses fluxos, vão importando volatilidade.
Mesmo que a volatilidade possa ser dolorosa no curto prazo, no longo prazo muitos países já experimentaram não só volatilidade brutal como também crescimento econômico sustentado. É o caso de quase todos os países que hoje são ricos, com destaque para os EUA no século 19, que experimentou uma série violenta de crises financeiras que afetaram a América Latina nos mesmos períodos e geralmente por causa de acontecimentos nos mercados europeus que aparentemente não tinham nenhuma relação.
Contudo a volatilidade traz um problema maior. Em determinados casos, as oscilações no mercado podem avolumar-se tanto que uma crise financeira pode chegar ao ponto de repentinamente degenerar-se e tornar-se um colapso econômico. Assim foi o caso da crise da dívida externa dos anos 80.
Uma forma de pensar essas crises é a analogia com as flutuações no valor dos ativos de uma empresa. Se a volatilidade no valor dos ativos não ultrapassar o valor do patrimônio, a empresa pode sobreviver um período de dificuldades e eventualmente recuperar-se. Mas, se a queda do valor dos ativos de repente supera o valor do patrimônio, a dívida torna-se impagável e a empresa, insolvente.
Parece óbvio que, se a volatilidade é alta, a estratégia certa seria estruturar os passivos de tal forma que reduza o impacto da volatilidade externa. Há muitas formas de fazer isso, mas todas elas em última instância levam a acessar o capital externo de tal modo que o pagamento da dívida fica condicionado ao desempenho da economia.
Com isso, queremos dizer que os pagamentos da dívida devem ser estruturados de modo que o país deva mais e pague mais nos tempos das vacas gordas e menos nos períodos de dificuldade. Esse conceito simples evidentemente resulta no amortecimento da volatilidade, porque o país "aumenta" os pagamentos da dívida nos tempos bons e os "reduz" nos tempos ruins.
Infelizmente há excessivo otimismo nos períodos de mercados em alta, quando há um bom fluxo de capital externo. Os devedores nos mercados emergentes não podem resistir à tentação de estruturar os passivos de modo contrário da colocação acima. Estruturam os passivos de modo que haja custos menores justamente quando as condições melhoram. O pior é que, durante os períodos de pressões para baixo no mercado, os devedores estão tão convencidos de que seus problemas são passageiros que eles apostam mais ainda que as coisas só podem melhorar.
Na verdade, muitos integrantes das equipes econômicas acreditam, e muito erroneamente, que eles devem continuar se endividando de forma perigosa com a intenção de sinalizar ao mercado, acenando com confiança na sua economia nacional. Naturalmente, o mercado raramente acredita nisso e chega a penalizar os países que administram sua exposição ao risco desse modo precário.
Como ficou comprovado pelos tigres asiáticos, o problema é que tais estruturas, por definição, causarão um aumento dos custos caso haja uma repentina e inesperada "deterioração" nas condições. Esses países, então, estão expostos ao risco de um problema financeiro repentino se tornar a entrada de uma trajetória espiral caminhando ao colapso, devido à própria estrutura de passivos do país.
Na Ásia, por exemplo, as empresas geralmente pediam empréstimos em dólares porque as taxas de juros desta moeda eram muito inferiores às taxas cobradas nas moedas nacionais. Não parecia possível uma queda repentina da moeda nacional que faria com que as taxas do dólar fossem fortemente elevadas num momento de contração da economia nacional.
Além disso, os devedores achavam que a sua capacidade de endividamento iria melhorar (em nenhum país as pessoas acreditam que pode deteriorar) e se endividaram em dólares de curto prazo, pensando que poderiam refinanciar no futuro, beneficiando-se de taxas ainda menores. Quando se endividaram na moeda nacional, só contraíram taxas de curto prazo, porque acreditavam que a inflação e as taxas de juros só poderiam cair.
Como todo mundo sabe, houve consequências dramáticas. Durante muito tempo a aposta deu certo e houve um forte aumento de patrimônio nacional nesses países. Mas, quando as coisas se tornaram difíceis, as estruturas nacionais de passivos causaram perdas em dobro, "a duplicação das perdas", como dizem os jogadores, dando lugar a uma série de colapsos econômicos importantes e desfazendo muito do progresso antes conseguido por essas economias aparentemente invencíveis.
Quais as lições para o Brasil? Primeiramente, as estruturas dos passivos são mecanismos decisivos para a transmissão dos choques externos aos quais esses países já são altamente sensíveis. Em segundo lugar, durante os bons tempos econômicos há uma perigosa tendência em esquecer o papel fundamental das condições externas, com o resultado que muitos no governo e no setor privado chegam a acreditar que são eles mesmos que trouxeram os bons tempos e que eles podem controlar seu próprio futuro.
A verdade é que ninguém pode prever os eventos futuros. Para os devedores nos países de alta sensibilidade aos choques externos, é sempre melhor desenhar as estruturas de passivos com base na hipótese de que vêm mais choques pela frente, independentemente do grau de confiança que podem ter na sua última coqueluche econômica. O objetivo permanente deve ser usar a estrutura de passivos de forma que se possam reduzir as consequências dos choques.


Tradução de Thomas Nerney norte-americano, 39 anos, mestre em finanças, diretor do banco de investimentos Bear Stearns e professor-associado de finanças na Graduate School os Business da Columbia University (EUA).



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