São Paulo, #!L#Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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OPINIÃO ECONÔMICA
Uma estratégia para o conhecimento

RUBENS RICUPERO
Qual tem sido o impacto das compras por estrangeiros de firmas nacionais na capacidade brasileira de gerar tecnologia própria? Essa questão, suscitada em meu artigo anterior, é crucial, pois a economia e a competitividade exportadora dependem hoje muito mais de conhecimento e tecnologia do que de fatores tradicionais como o capital, a mão-de-obra barata, a abundância de recursos naturais.
A Unctad acaba de revelar que, em 1999, a América Latina recebeu US$ 97 bilhões de investimentos estrangeiros diretos, superando a Ásia, pela primeira vez desde 1986, entre as regiões em desenvolvimento. A mudança é, em princípio, animadora. Quando se olha mais de perto para o conteúdo desse investimento, a conclusão é mais ambígua. Com efeito, boa parte desse dinheiro serviu não para a construção de novas usinas e fábricas, como na época de JK e da indústria automobilística, mas para a compra ou fusão de empresas já existentes. Além disso, o investimento estrangeiro não veio, na esmagadora maioria, para gerar exportações, mas sim atraído pelo mercado local ou regional (o Mercosul), trazendo consigo alta dependência de importações das matrizes.
É o que ressalta de estudo preparado para o "World Investment Report", da Unctad, por José Cassiolato, especialista brasileiro em política industrial e tecnologia. Ele mostra que a aquisição de controle de uma empresa nacional por uma transnacional é quase invariavelmente acompanhada pelo abandono da pesquisa para criar tecnologia original e a adoção de política de caráter meramente adaptativo, isto é, destinada a adaptar às condições do mercado local os processos e componentes importados da empresa matriz.
O exame do que se vem passando na indústria automobilística e de autopeças é revelador. As grandes companhias nacionais conhecidas pela capacidade de inovação tecnológica nesse setor - Metal Leve, Freios Varga, Cofap - sofreram imediata degradação em matéria de inovação tecnológica após terem sido vendidas para transnacionais em 1996 e 1997. Ao mesmo tempo, o coeficiente de penetração de importação de peças e componentes saltou de 8% em 1993 para o nível de 20% a 25% em 1996.
Nos núcleos de telecomunicações e tecnologia da informação, em Campinas e São Carlos, o padrão é também preocupante. As filiais de transnacionais operam isoladas dos sistemas locais de inovação e pouco se interessam por estabelecer cadeias de suprimento com pequenas e médias empresas da região. As empresas estrangeiras mais antigas na área de Campinas suspenderam substancialmente as pesquisas originais que vinham desenvolvendo em sistemas de telefonia. Por fim, as firmas inovativas locais foram em maioria vendidas a transnacionais, algumas desapareceram e poucas sobrevivem. A redução em pesquisa tecnológica é uma constante nos casos de aquisições por estrangeiros, como ocorreu com a Elebra, adquirida pela Alcatel em 1992. As restantes sobrevivem precariamente, não conseguem crescer, sempre ameaçadas por ofertas hostis. Cassiolato cita como exemplo a Zetax e a Batik - duas das empresas que tinham resistido e trabalhavam no desenvolvimento dos sistemas telefônicos Trópico-, vendidas em junho de 1999 à recém-chegada Lucent, transnacional sem maiores vínculos com a rede nacional de inovação.
Esse panorama desencorajador é completado por outras características negativas: cortes drásticos nas atividades de alto potencial inovador, tais como a pesquisa e desenvolvimento de produtos novos, preferência por gastos em atividades menos inovadoras (desenvolvimento de software, adaptação de produtos importados, serviços técnicos), diminuição na contratação de técnicos brasileiros, transferência de engenheiros do setor de pesquisas para atividades comerciais ou industriais (marketing, produção, vendas e assistência técnica). Nessas condições, conclui Cassiolato, não surpreende que o coeficiente de importação em telecomunicações e informática tenha passado de 29% em 1993 para 70% em 1996.
Diante disso, os profissionais da passividade e da resignação dirão que não há nada a fazer, que a globalização é inevitável, que não temos escala de mercado para continuar na disputa tecnológica. Mas acaso Taiwan, Cingapura e Coréia têm mais escala do que nós? E, não obstante, todos os três desenvolveram base tecnológica própria, como vêm fazendo agora Malásia, Tailândia e os países que conseguiram dinamizar as exportações.
Se o argumento fosse verdadeiro, como explicar que a única área em que ainda exportamos alta tecnologia em nível significativo seja a de aeronaves? Temos escala para aviões, e não para telefones ou autopeças? O curioso é que justamente os aviões da Embraer possuem elevado conteúdo de peças importadas, o que não impediu que o planejamento, o "design", a engenharia financeira, o marketing continuassem no Brasil. Não se deverá isso ao fato de que, sendo brasileiro o controle da Embraer, a estratégia da empresa é manter tais atividades entre nós? E, se assim for, não será possível formular estratégia similar para desenvolver conhecimento tecnológico em outros setores, com o apoio do governo para pesquisa e financiamento, como fazem os países acima citados, sem falar nos europeus e americanos?



Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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