São Paulo, Quinta-feira, 06 de Maio de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
Belém, vítima do regime colonial do espírito

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

"Não se imagina, no resto do Brasil, o que é a cidade de Belém", escreveu o grande Euclides da Cunha no início do século 20. Pois acabei de voltar de Belém, onde passei alguns dias, e poderia dizer exatamente a mesma coisa.
Quase cem anos depois, em plena suposta "era da informação", o quadro não mudou: o Brasil continua a ignorar o maravilhoso patrimônio histórico e cultural de uma de suas principais cidades.
O leitor poderá estar estranhando um pouco o tema que escolhi esta semana para uma coluna que é, afinal, de opinião econômica. Mas pretendo mostrar, caro leitor, que a relação entre os dois assuntos é maior do que pode parecer à primeira vista.
Veja o meu caso. Tenho mais de 40 anos e nunca fui, nem quis ser, um daqueles economistas "tecnocráticos", encantado ou obcecado com a ciência econômica e suas aplicações. Dentro dos estreitos limites da minha ignorância de economista, sempre tive grande interesse por temas culturais. Apesar disso, até o ano passado, quando conheci Belém, não tinha a mais vaga e remota idéia do que é essa cidade brasileira!
Eis o que eu queria dizer: o brasileiro não se interessa realmente pelo Brasil. Vive, eternamente, de costas para o próprio país e desconhece solenemente os seus valores e potencialidades.
Trata-se, como é óbvio, de uma das facetas da nossa crônica falta de auto-estima. Do nosso secular complexo de vira-latas, como diria Nelson Rodrigues. Complexo esse que sofreu, nos anos 90, diga-se de passagem, uma intensificação impressionante, que bem mereceria uma avaliação aprofundada da parte dos estudiosos dos problemas sociais brasileiros.
Foi esse complexo revigorado de vira-latas que contribuiu -e muito- para que a política econômica brasileira, nos últimos dez anos, importasse todo tipo de "consenso" internacional vagabundo, fabricado no Primeiro Mundo para consumo na periferia do planeta.
Assim como na área da cultura, também na da economia o Brasil tem sido induzido a ignorar, descartar e desprezar os seus valores e interesses básicos. O resultado foi que, a pretexto de modernizar, abrir e privatizar, produziu-se grande desnacionalização e enfraquecimento da economia nacional.
Há quem diga que, no fundo, no fundo, o brasileiro não tem motivos individuais ou coletivos, históricos ou recentes para a auto-estima. É um engano. Belém está aí, a demonstrá-lo de forma escandalosamente clara. Assim como Fortaleza, Florianópolis e outras cidades que só recentemente tive a oportunidade de conhecer melhor.
E, depois, é preciso considerar o seguinte: auto-estima é uma questão de disposição interna, subjetiva. De saber encontrar, criar e recriar, na realidade multifacetada e multicolorida do mundo, do jeito mesmo que ele é, com todas as suas ambivalências, sombras e abismos, os motivos para viver, para fortalecer e fazer crescer a vida. O que vale no plano individual da vida de cada um de nós vale também no plano nacional.
Evidentemente, enquanto continuarmos valorizando e importando indiscriminadamente tudo o quanto é vulgaridade produzida na Europa e, sobretudo, nos EUA, nada de fundamental vai mudar. Continuaremos clientes de todas as bobagens que, sob a égide de uma falsa "globalização", percorrem a Terra à cata de consumidores incautos e provincianos.
"Eadem, sed aliter" ("O mesmo, mas de outra maneira"), ensinava Schopenhauer. Certos traços centrais de um país mudam pouco ou nada. Ou, em todo o caso, muito menos do que sugere a superfície das coisas.
No livro "Contrastes e Confrontos", publicado em 1907, o mesmo Euclides da Cunha desancou o "cosmopolitismo" das elites brasileiras, a sua atitude imitativa e servil que conformava "uma espécie de regime colonial do espírito", capaz de transformar "o filho de um país num emigrado virtual, vivendo, estéril, no ambiente fictício de uma civilização de empréstimo".
O nosso fascínio beócio com a "globalização", com as novidades, muitas vezes falsas, da economia e da cultura "globais" do final do século 20 é apenas a última transfiguração desse antigo, antiquíssimo regime colonial do espírito.


Paulo Nogueira Batista Jr., 44, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@ibm.net



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