São Paulo, quinta-feira, 06 de junho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Soluções e sofismas na aviação brasileira

CARLOS FLÁVIO PEREIRA DE SOUZA

A entrevista com o presidente da Embraer, Maurício Botelho, na Folha de domingo, sobre o lobby que estaria sendo feito por pilotos americanos contra a venda de aviões brasileiros aos EUA enseja uma discussão a respeito da superficialidade com que os executivos da indústria do transporte aéreo vêem a questão do caos por que passa a aviação internacional. Muito regularmente, executivos de empresas aéreas e da Embraer vêm aos jornais e TV para dar declarações simplistas sobre causas e soluções para a crise. Mais comumente ainda, dizem que os atentados de 11 de setembro mudaram o curso da indústria.
Localmente, teorizam que a proximidade da falência da aviação é um problema conjuntural, orgânico e que precisa da intervenção financeira do governo para que se construa uma saída. Os juros, a carga tributária altíssima, o "custo Brasil", a concorrência predatória das internacionais, entre outros motivos, já seriam suficientes para que o BNDES, por exemplo, viesse em socorro.
Não falta o discurso alegando que, no Brasil, nada se fez para apoiar as empresas, diferentemente dos EUA. Não mencionam, entretanto, que os efeitos produzidos pelo 11 de setembro na aviação doméstica foram exatamente o contrário dos sentidos nos EUA e em parte da Europa: aqueceram a demanda por vôos domésticos, aumentaram as taxas de ocupação dos aviões e fizeram passageiros internacionais buscarem a segurança de empresas de bandeiras não-norte-americanas, teoricamente menos suscetíveis a atentados.
Raramente, para não dizer nunca, falam de duas questões que talvez trouxessem realmente uma luz sobre essa escuridão: a gestão do negócio e a capacidade de controlar as finanças. A primeira ilumina uma avenida obscura, qual seja o equilíbrio entre oferta de assentos, presença nos mercados e demanda por serviços; a segunda trata do conceito de "too big to fail" ("grande demais para falir") e da relação incestuosa que empresas de aviação e governo sempre tiveram quando se tratava de ajuda financeira.
Posso dizer que os executivos da indústria brasileira continuam tentando enganar uma boa parte do governo e o povo quando escrevem seus discursos sobre a crise. O povo, por simples desconhecimento, pode até continuar sendo sensibilizado por essas lamúrias, mas, felizmente, parece que tanto Executivo quanto Legislativo acordaram-se: o problema das empresas brasileiras, muito possivelmente, é de gestão mesmo. Por mais que tentem esses executivos alegar que, se assim fosse, não estariam a falir boa parte das empresas internacionais, não há termo de comparação entre as conjunturas.
Excetuando-se o desequilíbrio entre oferta de assentos e demanda, nada mais há de comum entre as indústrias brasileiras e norte-americanas, por exemplo. O que há, na realidade, é uma enorme dificuldade de adaptação aos tempos de competição num clima de economia desregulada. Foi assim nos EUA, na Europa e na Ásia, na época da desregulação dos mercados. Por que não seria no Brasil? As empresas de aviação brasileiras, a Varig, em especial, precisam ganhar a motricidade e a agilidade que o mercado exige da indústria. Caso contrário, qualquer aporte do erário não passará de mero enxugar gelo.
O modelo convencional de, ao primeiro sinal de falência, a direção das empresas ir em périplo a Brasília e declarar "se o governo não intervier, a aviação brasileira, estratégica e imprescindível num país de dimensões continentais, vai fechar suas portas; os americanos vão vir e tomar o nosso mercado; vão fazer cabotagem; vão arrancar os empregos dos trabalhadores locais" já não encontra mais eco. Comumente, tais executivos recebiam o auxílio desejado, com o compromisso de adequar suas empresas operacional e financeiramente. Depois, voltavam para Rio e São Paulo, combinavam os preços das passagens e encontravam uma forma de reduzir custos operacionais demitindo funcionários e terceirizando atividades essenciais. Para que tenha uma idéia, a participação das despesas com pessoal caíram de perto de 25% para 17% dos custos operacionais apenas nos últimos seis anos -e as empresas reduziram suas estruturas de fornecimento de alimentação, oficinas e apoio pela metade. O setor de reservas e venda de passagens tampouco ficou incólume. A eficiência dos funcionários da empresas nacionais, diga-se de passagem, se encontra hoje entre as maiores do mundo.
De volta ao que enseja este texto, o presidente da Embraer alega, como se não soubesse da verdade, que uma cláusula dos contratos de trabalho dos pilotos americanos, exagerada, segundo ele, impede que as empresas de aviação importem os aviões que a Embraer vem tentando colocar no mais promissor de todos os segmentos do mercado: aeronaves com entre 80 e 120 assentos. Segundo ele, o que obsta a operação de exportação é um capricho daqueles colegas, mais comumente conhecido e cultuado por empresários como "domínio de mercado", bastante recomendado para o meio empresarial, mas condenado quando aplicado ao meio trabalhista.
Os pilotos americanos negociaram e contrataram coletivamente com empresários, em meados de 80, uma forma de prevenir que o processo de multiplicação de empresas dentro de empresas, mais conhecido lá como "alter ego", produzisse um fenômeno muito comum no Terceiro Mundo: a transferência de atividade e mão-de-obra de uma empresa-mãe para uma subsidiária, com salários, naturalmente, menores. São instrumentos chamados de "scope clauses", incorporados a praticamente cem de cem contratos coletivos de trabalho.
Essas cláusulas, pelo que tem sido discutido entre os sindicatos de pilotos dos EUA, seriam a peça de resistência contra as múltiplas tentativas de empresários reduzirem salários, sub-repticiamente. Diferentemente do que afirma o presidente da Embraer, é muito pouco provável que as empresas americanas derrubem essa cláusula e, se depender disso para o fabricante vender aviões, é bom pensar numa saída. É bem mais fácil os pilotos raciocinarem, rapidamente, e concluir que o problema da indústria não é o custo da mão-de-obra e, por isso, não permitirão ser explorados sob a alegação de que inviabilizam as empresas. Lá, esse discurso não pega.
Aqui, os pilotos da Varig, que por meio de sua associação vêm liderando um processo de reivindicação para que se incluam as "scope clauses" em seus contratos e se reformulem os modelos de governança corporativa e gestão da empresa, já têm uma idéia do quanto os seus executivos pensam como o presidente da Embraer: tiveram a direção toda da associação e mais 20 pilotos "rebeldes" demitidos. Chocados no início, hoje já entendem em parte a reação dos administradores: eles simplesmente agiram conforme a sua natureza, pois desconhecem outra forma de administrar.
É saudável, portanto, que a sociedade, usuária do transporte aéreo brasileiro, e o Estado, em especial, reflitam sobre as saídas para a crise. Ouvir somente os empresários e executivos do setor, sob a ameaça de perder as empresas nacionais, pode custar caro para o bolso do contribuinte.


Carlos Flávio Pereira de Souza, 41, é presidente da Apvar (Associação de Pilotos da Varig).

Hoje, excepcionalmente, a coluna de Paulo Nogueira Batista Jr. não é publicada.


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