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LUÍS NASSIF
O pistonista de Guará
Tia Mariana era minha tia-avó, irmã mais velha de minha avó Martha. Era uma velha
sábia, daquela sabedoria ancestral, e com uma capacidade de
verbalizar frases à altura de um
Pedro Nava. Igual só conheci tia
Olímpia, a louca maravilhosa de
Ouro Preto, que nos deixava perplexos com suas fantasias e capacidade de compor frases que jorravam aos borbotões, com pontos
e vírgulas no lugar. Tia Mariana
tinha a verborragia, mas era lúcida como poucos.
Foi por meio da voz de tia Mariana, em homenagem à qual batizei minha Maricotinha, que
aprendi o "Frô do Ipê", música seresteira-sertaneja dos anos 30,
que me deixava triste e cismador.
"Cabocla linda Frô do Ypê / eu
quero casá com vancê".
Tio Léo, um carioca que chegou
a Poços nos anos 40, cantava lindamente a seresta, assim como
"Teus Olhos Castanhos" ("teus
olhos / são dois astros pequeninos"). No final dos anos 60, Jacob
do Bandolim imortalizaria "Flamengo", um choro clássico.
Levou algum tempo para descobrir que os três clássicos eram de
Bomfiglio de Oliveira (assim mesmo, com m), pistonista e um dos
grandes músicos da história. Menos pelo "Flamengo", mais conhecido pelo "Frô do Ypê", que só
alguns anos atrás soube ser dele e
de Nelson de Abreu, assim como
"Teus Olhos Castanhos", em parceria com Lamartine Babo.
O lançamento do CD "Bomfiglio de Oliveira", pelo selo Revivendo, é um momento raro para
conhecer parte da obra de um autor fundamental do choro e da
música brasileira.
Paulista de Guaratinguetá, nascido em 1891, pistonista de belo
sopro, Bomfiglio pertence à geração pré-anos 30, que se estende
depois até 1940, quando morreu
prematuramente.
A moderna música cantada
brasileira surge no Rio de Janeiro
logo no início dos anos 30, com
autores como Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo e Pixinguinha, e sob enorme influência do
frevo pernambucano -que se
modernizara antes.
É curiosa uma mudança tão
marcante iniciar-se logo em 1930,
como se houvesse um corte
abrupto na mudança da dezena,
que lança a música brasileira definitivamente na modernidade.
Nos anos 20 obviamente já estavam plantadas as raízes dessa
modernidade. No samba, de forma diluída e tendo em Sinhô o
grande nome da estilização e simplificação do maxixe.
O choro já experimentara uma
revolução no final dos anos 10,
quando descobre o sincopado,
provavelmente sob a influência
do dixieland. É inacreditável serem desse período clássicos moderníssimos do sincopado, como
"Tico-Tico no Fubá", de Zequinha de Abreu, "Um a Zero", de
Pixinguinha, e "Apanhei-Te Cavaquinho", de Nazareth.
Bomfiglio transita nesse ambiente, fazendo parte do grupo
que nasce sob a influência das
bandas de música, passa pela influência sertanejo-urbana dos
Turunas da Mauricéia, passeia
por intérpretes pioneiros, como
Augusto Calheiros e Gastão Formenti e o próprio Francisco Alves,
e acaba desaguando no choro,
com Pixinguinha e a nova geração que vai modernizar o gênero
nos anos seguintes.
É um luxo poder apreciar "O
Que se Pode Arranjar", de 1934,
solado por ele próprio, o "Saudades do Guará", interpretado pela
Orquestra Típica Victor, em gravação de 1937.
Mas a maior preciosidade desse
CD é o choro "Triste Alegria", interpretado ao bandolim por Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto.
A gravação é de 1950, período em
que Jacob do Bandolim ainda estava em início de carreira. A gravação permite comprovar algo
que venho insistindo há tempos: a
escola de bandolim de Jacob foi
calcada inteiramente em menos
de uma dúzia de gravações de
Garoto ao bandolim, de 1946 a
1950.
A maneira como une partes da
música, o dedilhar vertiginoso,
com as notas despencando semitom a semitom até cair no tempo
certo na nota correta, a maneira
de jogar as notas no tempo fraco,
o modelo de improviso, os cacos
entre as partes da música transformam Garoto não apenas no
grande inovador do violão brasileiro mas também do cavaquinho
e do bandolim.
Um disco imperdível, esse.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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