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São Paulo, domingo, 06 de julho de 2003

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LUÍS NASSIF

O pistonista de Guará

Tia Mariana era minha tia-avó, irmã mais velha de minha avó Martha. Era uma velha sábia, daquela sabedoria ancestral, e com uma capacidade de verbalizar frases à altura de um Pedro Nava. Igual só conheci tia Olímpia, a louca maravilhosa de Ouro Preto, que nos deixava perplexos com suas fantasias e capacidade de compor frases que jorravam aos borbotões, com pontos e vírgulas no lugar. Tia Mariana tinha a verborragia, mas era lúcida como poucos.
Foi por meio da voz de tia Mariana, em homenagem à qual batizei minha Maricotinha, que aprendi o "Frô do Ipê", música seresteira-sertaneja dos anos 30, que me deixava triste e cismador. "Cabocla linda Frô do Ypê / eu quero casá com vancê".
Tio Léo, um carioca que chegou a Poços nos anos 40, cantava lindamente a seresta, assim como "Teus Olhos Castanhos" ("teus olhos / são dois astros pequeninos"). No final dos anos 60, Jacob do Bandolim imortalizaria "Flamengo", um choro clássico.
Levou algum tempo para descobrir que os três clássicos eram de Bomfiglio de Oliveira (assim mesmo, com m), pistonista e um dos grandes músicos da história. Menos pelo "Flamengo", mais conhecido pelo "Frô do Ypê", que só alguns anos atrás soube ser dele e de Nelson de Abreu, assim como "Teus Olhos Castanhos", em parceria com Lamartine Babo.
O lançamento do CD "Bomfiglio de Oliveira", pelo selo Revivendo, é um momento raro para conhecer parte da obra de um autor fundamental do choro e da música brasileira.
Paulista de Guaratinguetá, nascido em 1891, pistonista de belo sopro, Bomfiglio pertence à geração pré-anos 30, que se estende depois até 1940, quando morreu prematuramente.
A moderna música cantada brasileira surge no Rio de Janeiro logo no início dos anos 30, com autores como Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo e Pixinguinha, e sob enorme influência do frevo pernambucano -que se modernizara antes.
É curiosa uma mudança tão marcante iniciar-se logo em 1930, como se houvesse um corte abrupto na mudança da dezena, que lança a música brasileira definitivamente na modernidade. Nos anos 20 obviamente já estavam plantadas as raízes dessa modernidade. No samba, de forma diluída e tendo em Sinhô o grande nome da estilização e simplificação do maxixe.
O choro já experimentara uma revolução no final dos anos 10, quando descobre o sincopado, provavelmente sob a influência do dixieland. É inacreditável serem desse período clássicos moderníssimos do sincopado, como "Tico-Tico no Fubá", de Zequinha de Abreu, "Um a Zero", de Pixinguinha, e "Apanhei-Te Cavaquinho", de Nazareth.
Bomfiglio transita nesse ambiente, fazendo parte do grupo que nasce sob a influência das bandas de música, passa pela influência sertanejo-urbana dos Turunas da Mauricéia, passeia por intérpretes pioneiros, como Augusto Calheiros e Gastão Formenti e o próprio Francisco Alves, e acaba desaguando no choro, com Pixinguinha e a nova geração que vai modernizar o gênero nos anos seguintes.
É um luxo poder apreciar "O Que se Pode Arranjar", de 1934, solado por ele próprio, o "Saudades do Guará", interpretado pela Orquestra Típica Victor, em gravação de 1937.
Mas a maior preciosidade desse CD é o choro "Triste Alegria", interpretado ao bandolim por Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto. A gravação é de 1950, período em que Jacob do Bandolim ainda estava em início de carreira. A gravação permite comprovar algo que venho insistindo há tempos: a escola de bandolim de Jacob foi calcada inteiramente em menos de uma dúzia de gravações de Garoto ao bandolim, de 1946 a 1950.
A maneira como une partes da música, o dedilhar vertiginoso, com as notas despencando semitom a semitom até cair no tempo certo na nota correta, a maneira de jogar as notas no tempo fraco, o modelo de improviso, os cacos entre as partes da música transformam Garoto não apenas no grande inovador do violão brasileiro mas também do cavaquinho e do bandolim.
Um disco imperdível, esse.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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