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São Paulo, sábado, 06 de setembro de 2003

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ARTIGO

Bush quer que China ajude americanos

PAUL KRUGMAN

Uma coisa engraçada aconteceu nesta semana: o governo Bush, com seu agressivo unilateralismo e desprezo pela diplomacia e pelas instituições internacionais, subitamente decidiu apostar seu futuro na generosidade de estranhos.
Todo mundo sabe sobre a reviravolta no Iraque: depois de desperdiçar nosso poderio militar em uma guerra que ele queria travar mesmo que ela nada tivesse a ver com o terrorismo, o presidente Bush agora está implorando aos comedores de queijo e aos fabricantes de chocolate que o resgatem. O que talvez não seja igualmente óbvio é o fato de que ele está fazendo a mesma coisa na frente econômica. Tendo desperdiçado o espaço de manobra que tinha para a economia com cortes de impostos -que satisfizeram as bases de seu partido, mas não fizeram nada pela criação de empregos-, Bush agora está pedindo que a China o ajude.
Não que, evidentemente, o senhor Bush admita ter cometido erros. Na verdade, o presidente parece estar sofrendo de um caso sério de "l'état c'est moi" [o Estado sou eu]: ele coloca em dúvida o patriotismo de qualquer pessoa que conteste suas decisões.
Se alguém pergunta por que ele desviou recursos empregados na caça à Al Qaeda, que nos atacou, para a invasão do Iraque, que não o fez, Bush sugere que a atitude do questionador quanto à defesa nacional é fraca. E a mesma coisa vale para quem questione seu histórico econômico. "Eles me disseram que a recessão foi amena", declarou Bush na segunda. "E ela foi amena devido ao corte de impostos. Algumas pessoas dizem que talvez a recessão devesse ter sido mais profunda. Que as pessoas digam isso me incomoda."
Ou seja, se alguém pergunta por que ele pressionou pelos cortes de impostos no longo prazo em vez de se concentrar na criação de empregos, ele diz que a pessoa queria recessão mais profunda. Incomoda-me que ele diga isso.
Evidentemente, ninguém diz que a recessão deveria ter sido mais profunda. O que os críticos argumentaram -e com razão- foi que a estratégia econômica adotada por Bush, de cortes de impostos favoráveis aos ricos, com algumas vantagens simbólicas para a classe média, geraria déficit máximo e estímulo mínimo. Talvez "eles" digam ao presidente que a recessão foi amena, mas os desempregados de longo prazo decerto não concordarão.
E o fato de que mesmo com todo esse déficit a recuperação continue a não gerar empregos deveria levá-lo a imaginar se o tipo de déficit que ele vem acumulando não é o errado. Mas, em lugar disso, o presidente decidiu pedir ajuda aos chineses.
Admita-se que sua atitude não pareceu a de alguém que está pedindo ajuda. Ele optou por parecer durão. "Esperamos que o jogo seja limpo, no que tange ao comércio internacional... e pretendemos manter as regras justas." Todo mundo entende que isso é uma referência ao yuan, a moeda chinesa supostamente subvalorizada, que alguns grupos empresariais apontam como um importante problema para as companhias norte-americanas.
Aliás, mesmo que os chineses atendessem às demandas norte-americanas por um aumento no valor do yuan, isso não faria muito efeito a não ser que a valorização fosse grande. E a China não concordará com uma valorização substancial porque seu superávit imenso no comércio com os Estados Unidos é compensado, em larga medida, por grandes déficits no comércio com outros países.
Ainda assim, uma valorização modesta da taxa cambial por parte de Pequim poderia permitir que Bush alegasse estar fazendo alguma coisa sobre a perda de empregos na indústria. E assim, John Snow, o secretário do Tesouro, viajou a Pequim para solicitar uma alta no valor do yuan com relação ao dólar.
Mas ele não foi atendido. Um estudo rápido da situação revela um dos motivos: os EUA no momento têm pouca influência sobre a China. Bush precisa da ajuda dos chineses para lidar com a Coréia do Norte -mais uma crise cujo agravamento foi permitido enquanto o governo norte-americano concentrava suas atenções no Iraque. Além disso, as compras de notas do Tesouro norte-americano pelo banco central chinês são uma das principais maneiras pelas quais os EUA financiam o seu déficit comercial.
Ninguém está seguro quanto ao que aconteceria caso a China optasse subitamente por investir, digamos, em euros -alta de dois pontos nos juros hipotecários?-, mas não se trata de uma experiência que qualquer um deseje tentar.
E pode, além disso, haver outra razão. Os chineses se lembram bem que, nos primeiros meses da gestão Bush, funcionários de sua administração descreveram a China como "concorrente estratégico" -eles pareciam estar à procura de uma nova guerra fria, antes que o terrorismo surgisse como uma causa mais fácil. Assim, Bush pode ter tanta dificuldade para obter ajuda da China quanto dos países que alguns dos membros de seu governo ridicularizaram como "a velha Europa".
"Sic transit" e essas coisas. Quatro meses depois da operação Flight Suit, a superpotência passou a pedir favores às nações que antes insultava. Missão cumprida.


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA) e colunista do "New York Times".

Tradução de Paulo Migliacci


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