São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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LUÍS NASSIF
Hélder Girão, um juiz de direito


Você já teve a oportunidade de conviver com um nordestino intelectualizado? Não há paralelo com brasileiros de outras regiões. Cultiva as raízes, espelha-se nas figuras históricas regionais, tem um sentimento nativista que transborda permanentemente na celebração da brasilidade, seja na música, literatura ou história.
Em qualquer sarau, prepare-se para ouvir poemas regionais aos borbotões, recitados com voz de baixo profundo e olhos voltados para o céu, como Cíceros do sertão.
Para quem aprecia, como eu, é um prato cheio.
Em geral, é um tanto barroco na oratória, escreve com algum rebuscamento e o conceito de honra está umbilicalmente ligado ao da valentia.
Principalmente, cada qual se sente imbuído de uma missão histórica, como se viesse ao mundo atrás de um registro, que seja tão marcante e duradouro como, por exemplo, uma inscrição em lápide de mármore.
O juiz Hélder Girão Barreto, 35, pertence a essa estirpe. Nasceu em Fortaleza, de uma família de magistrados, foi batizado de Hélder em homenagem ao arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder Câmara. Em sua vida acadêmica e profissional, cultivou juristas com vocação pública. Dedica especial admiração a Rui Barbosa, João e Otávio Mangabeira, a quem cita frequentemente em suas sentenças.
Há dez anos mudou-se para Roraima, há cinco tornou-se juiz estadual, há um resolveu que era hora de cumprir sua missão. O desafio escolhido foi ambicioso. Entendeu ele que a autonomia do Poder Judiciário estava ameaçada pelas propostas de controle externo da magistratura. E concluiu, com acerto, que a única maneira de preservar a independência seria o Judiciário demonstrar que pode se regular a si próprio.
A lei proíbe o nepotismo no serviço público. Então trate-se de cumprir a lei, a começar da própria casa. E o jovem juiz, em março de 1997, acolheu ação proposta do bravo Ministério Público estadual, obrigando os desembargadores do próprio Tribunal de Justiça do Estado a abandonar o nepotismo.
Aí o faroeste despencou em sua cabeça.
Faroeste
Roraima , assim como Tocantins e outros Estados novos da região, sofre de problema sério na Justiça, uma leva de desembargadores nomeados pelos primeiros governadores eleitos, que acabaram se perpetuando no cargo, tornando-se donos de fato do Estado e praticando discricionariamente seu poder.
Boa Vista tem cerca de 250 mil habitantes; o Estado, menos de 800 mil habitantes. A capital está a duas ou três horas da fronteira com a Venezuela. Nas margens, é cercada pela floresta amazônica.
Nessa terra de ninguém, um membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi assassinado tempos atrás, depois de ter denunciado nomeações irregulares de desembargadores locais. O juiz Hélder mandou a júri os supostos mentores e executores. Entre os mentores, dois filhos de um ex-desembargador. O TJ interferiu, livrando-os do júri. Um auditor do Tesouro Nacional, então delegado da Receita Federal, foi assassinado em plena luz do dia, porque fiscalizava com rigor os empresários locais.
O Tribunal de Justiça de Roraima tem seis desembargadores, cinco indicados em 1990 pelo primeiro governador eleito, brigadeiro Ottomar de Souza Pinto. O sexto é o único juiz concursado. Os cinco indicados tinham dez parentes empregados no Tribunal -um dos quais trabalhando em Salvador. O concursado é o único que se comporta com decoro.
Surpreso com a sentença do juiz, contra o nepotismo, o Tribunal apelou... para o próprio Tribunal, que caçou a sentença -um caso estupendo de julgamento em causa própria.
Enquanto isso, os rapazes do Ministério Público estadual, uma espécie de "rangers" dos tempos das diligências, investigavam outros órgãos do Estado e descobriam nepotismo na Assembléia Legislativa, no Tribunal de Contas e no governo do Estado -o governador Neudo Campos empregou a própria mulher, Suely Campos, como secretária do Trabalho.
O Legislativo foi o único que acabou com o nepotismo espontaneamente. O TC exonerou os parentes por determinação judicial. Depois de julgar em causa própria, só restava ao TJ caçar todas as exonerações, inclusive as do governo do Estado.
Questão de princípio
As retaliações vieram rapidamente. Dois advogados, do escritório do presidente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil -estreitamente ligado ao TJ-, entraram com três representações contra o juiz Hélder. Era o pano de fundo para a punição que o juiz antecipava que iria sofrer.
A animosidade do Tribunal foi crescendo, dia a dia. A última ousadia do juiz foi ordenar a quebra do sigilo bancário e fiscal de diretores de uma companhia estadual e respectivas mulheres, entre as quais várias cunhadas do governador. O TJ caçou a decisão e, em seguida, em 12 de agosto, o juiz foi afastado do cargo -coincidentemente, no mesmo período em que foi aprovado em concurso para juiz federal.
Acuado
Hoje em dia, o juiz está cercado em Roraima. Colegas locais evitam se expor à arbitrariedade dos desembargadores. A Assembléia Legislativa silenciou. A OAB está estreitamente ligada ao Tribunal. Com exceção dos rapazes do Ministério Público estadual, não consegue mais do que o apoio solitário e mudo de seus alunos da Faculdade de Direito e de anônimos que o cumprimentam em voz baixa, para não se comprometerem.
Ele se consola com o grande apoio que tem recebido da comunidade jurídica nacional. Os e-mails de juízes recebem diariamente manifestações de colegas, alertando para a situação do juiz Hélder e pedindo a mobilização da classe.
Todos esses problemas não tiram do juiz o supremo prazer de ter conquistado seu feito. No dia 13 de março de 1997, analisando ação que corria no Rio Grande do Sul, o STF aprovou decisão combatendo o nepotismo em todos os níveis de governo, inclusive no próprio Tribunal do Estado. A sentença do juiz Hélder saiu três dias antes, em 10 de março de 1997. Sua inscrição no mármore está garantida.

E-mail: lnassif@uol.com.br


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