São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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LUÍS NASSIF

A Nestlé e o Cade

Por qualquer ângulo que se veja, a proibição da compra da Garoto pela Nestlé, decretada pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), é capítulo fundamental na história das agências reguladoras. Seja pela hipótese de o Cade ter avançado além de suas atribuições -conforme afirmou seu próprio presidente, João Grandino Rodas- , seja pelo fato de o órgão ter sua credibilidade e autonomia trincadas por seu próprio presidente -que, voto vencido na reunião, recomendou à parte derrotada que recorresse à Justiça. Mal comparando, seria a mesma coisa que o presidente do Banco Central denunciar o Copom quando for voto vencido na decisão de reduzir os juros.
O tema em questão tem nuances técnicas e políticas a serem bem pesadas, inclusive para aprimoramento do direito econômico no país.
As nuances técnicas são sobre o conceito de "mercado relevante" -ou seja, qual o mercado a analisar, para avaliar se o poder de uma empresa poderá permitir-lhe abusar dos preços.
Tenho para mim que o mercado relevante de chocolates é mais amplo do que o próprio mercado de chocolates. No orçamento doméstico, quem compete com o chocolate são o celular, os confeitos, o entretenimento. Há algumas matérias-primas que levam chocolate, mas não poderiam ser encontradas saídas menos radicais do que a anulação da compra?
A alegação dos conselheiros que votaram pela descontinuação da venda é a de que, inicialmente, havia um acordo pelo qual a Nestlé se comprometia a não adotar nenhuma atitude irreversível em relação à Garoto, até o Cade tomar a decisão final. De fato, essa informação é confirmada pelo "Consultor Jurídico" de 22 de março de 2002.
Mas até que ponto se justificava a decisão mais radical, de proibir a compra? Segundo conselheiros do Cade, diferentemente do caso AmBev, não havia unidades fabris da Garoto a serem vendidas. A Garoto tinha uma fábrica apenas.
Segundo os conselheiros do Cade, a Nestlé ofereceu pela Garoto um preço muito maior do que o oferecido por outros gigantes do mercado internacional. Esse sobrepreço se justificaria apenas pelo fato de estarem embutidos, no caso da Nestlé, os ganhos com o monopólio.
Segundo eles, os pareceres dos próprios economistas contratados pela Nestlé mostravam que dificilmente haveria ganhos para o consumidor, já que a maior parte da sinergia seria apropriada pela própria companhia. E mais: que, se fosse em outro país, a Nestlé jamais ousaria essa operação, porque saberia de antemão que seria vetada. Assim, ela teria insistido contando com o "jeitinho" brasileiro e com a visibilidade pública de seu presidente no país.
É importante anotar os argumentos por dois ângulos. O primeiro, por ele em si. O segundo, para demonstrar o estado de espírito do Cade em relação ao tema, julgando que a Nestlé pressionou indevidamente, tentando criar um fato consumado.
Lembram os conselheiros que não se tratou de cancelar investimentos. O dinheiro aplicado na compra foi para o bolso dos antigos controladores da Garoto. Portanto não houve acréscimo de produção e de emprego.
Por outro lado, quais as conseqüências econômicas dessa atitude? O Cade deu 90 dias para a operação ser desfeita. A Nestlé anunciou que irá recorrer à Justiça. O caso pode levar anos. Nesse período, há o risco concreto de a Garoto desaparecer. Os próprios conselheiros trabalham com a possibilidade, pois não interessaria à Nestlé criar um concorrente. Morrendo a Garoto, a Nestlé mantém seu poder de fogo no mercado e haverá empregos, produtos e investimentos a menos.

E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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