São Paulo, sábado, 8 de agosto de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Razões de esperança

RUBENS RICUPERO

Duzentos anos atrás, em fim de século parecido com o nosso, as eleições para os Estados Gerais, entre fevereiro e maio de 1789, foram como que a abertura da cortina para o drama da Revolução Francesa.
Em cada ordem da sociedade, a nobreza, o clero e o Terceiro Estado, os eleitores costumavam redigir a exposição de suas queixas ("doléances") e aspirações. Esse bom costume, infelizmente abandonado, deu origem a milhares de "Cadernos de Queixas" ("Cahiers de Doléances"), preciosos documentos do estado de espírito na França à vespera da Revolução.
Na semana passada, em reunião de estudo com amigos perto da fronteira franco-espanhola, sugeri fazermos o mesmo, como preparação para o terceiro milênio -"Cahiers d'Espérance", cadernos nos quais apresentássemos não nossos desejos utópicos, irrealistas, nossos sonhos ideais, mas sim as razões concretas para ter esperança, os motivos válidos para crer que o futuro poderá ser melhor que o presente e o passado.
Nesse debate, a conclusão unânime foi que a primeira razão para ter esperança é a mudança na situação da mulher. Embora falte muito a fazer e até se registrem retrocessos em alguns países, o movimento em direção à maior igualdade dos sexos é irreversível. Seu potencial revolucionário para mudar a vida, a qualidade mesma da existência, é incalculável, por se tratar de transformação que se opera não apenas no plano das instituições externas, mas no mais recôndito da intimidade das pessoas.
Se já se fez tanto, apesar da participação feminina reprimida e limitada, o que não se poderá realizar com a completa liberação de energia e criatividade oriunda da emancipação da mulher, de seu acesso à educação, às artes, ciências, às profissões, ao mercado de trabalho?
Alguém de nosso grupo lembrou a imagem do cérebro: é como se a humanidade tivesse funcionado até agora apenas com uma das metades e de repente passasse a trabalhar com as duas metades do cérebro.
Ainda nesse domínio da emancipação individual, de luta contra as dominações que nos escravizam a consciência, e não apenas da reação contra a opressão do Estado ou das instituições, teríamos de capitalizar os avanços na maneira de lidar com a nossa sexualidade e a dos outros.
Estamos longe do ideal, mas melhoramos bastante na compreensão da heterossexualidade, mas também do homossexualismo, um dos comportamentos mais cruel e irracionalmente perseguidos em nossa cultura.
Esses temas pertencem todos ao que se poderia chamar de relações interpessoais, isto é, a relação homem-mulher, a relação de cada um consigo próprio, o relacionamento adulto-criança, jovem-velho. Basta passar os olhos na listagem para perceber que nem sempre poderíamos dizer que progredimos. Alguém, por exemplo, acredita que tratamos hoje os velhos, mesmo pai e mãe, de forma melhor que os nossos pais trataram os deles?
Passando ao campo seguinte, o das relações das pessoas com a natureza, com os meios físico e biológico que nos envolvem, é difícil negar que compreendemos e valorizamos melhor a nossa dependência em relação ao ambiente, embora seja altamente duvidoso afirmar que tenhamos já estabelecido com ele equilíbrio satisfatório.
Além dos progressos da consciência ecológica, fazem parte desse capítulo de razões para esperar todas as extraordinárias possibilidades, para o bem e para o mal, abertas pela bioquímica e a engenharia genética, a física das novas fontes de energia, o encurtamento do espaço e a aceleração do tempo, como consequência da revolução em eletrônica, computadores, telecomunicações.
A seção seguinte é obviamente a das relações de cada um com a sociedade, indo das conquistas em democracias aos direitos humanos, da educação permanente e saúde universal ao fenômeno recente da emergência de atores não-governamentais, associações, organizações comunitárias capazes de pressionar os governos a engolir relutantemente avanços em meio ambiente, direitos humanos, iniciativas concretas como o tratado antiminas pessoais ou a corte penal internacional.
Um motivo de esperança é a riqueza que se esconde na quase infinita variedade de experiências humanas, a diversidade de culturas, de formas de espiritualidade, de sensibilidade, de maneiras de se abrir a Deus, aos outros, ao transcendente.
Em "The Clash of Civilizations" ("O Choque das Civilizações"), o professor Samuel Huntington viu na diversidade de culturas e civilizações o potencial conflitivo, de preferência o de interfertilização, a capacidade de aprender com aquele que é diferente de nós, sem renunciar à própria identidade.
Mas a história da civilização tem sido uma incessante troca de conhecimento, de importação de valores e aspirações, a começar pela importação da própria noção de um Deus uno e criador do universo, sem se confundir com Ele, espiritual e transcendente, que devemos todos à cultura judaica.
No momento em que a globalização cultural das telecomunicações põe fim a 5.000 anos de solidão, por que teríamos necessariamente de temer que o aumento de contacto conduza à intolerância e não à mútua compreensão, à imitação recíproca?
Por que não acreditar na possibilidade do ideal resumido, anos atrás, no Brasil, no cartaz no qual um indiozinho nos olhava e dizia: "Eu quero ser o que você é sem deixar de ser o que eu sou"?



Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos sábados nesta coluna.




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