São Paulo, quarta-feira, 08 de setembro de 2004

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LUÍS NASSIF

O Orçamento e a incerteza

A discussão econômica dos anos 90 foi montada em cima de clichês, que se perpetuaram pela força da repetição. Um deles é o suposto "engessamento" do Orçamento, as vinculações criadas pela Constituição de 1988 que, segundo os planilheiros, não permitiriam uma gestão financeira flexível. Como se essa flexibilidade fosse precondição para resolver os problemas nacionais.
Tome-se o 89º artigo de um desses consultores, em sua coluna dominical no "Estado de S. Paulo". Os números que menciona são estrondosos. As receitas estimadas para o Orçamento de 2005 são de R$ 457,4 bilhões. As despesas obrigatórias pela Constituição alcançam R$ 361,7 bilhões. Aí ele acrescenta as despesas de juros, e o "gasto rígido" passa a R$ 442 bilhões, ou 96,6% das receitas. "Restam, pois, apenas R$ 15,4 bilhões para utilização discricionária". Há que criar a flexibilidade, mas onde? Em cima dos juros? Não dá, porque é "pagamento obrigatório por contrato e pela realidade".
Um marciano que descesse no Brasil suporia, com justa razão, que as vinculações orçamentárias se destinam ao supérfluo, ao desperdício, a alimentar a irracionalidade burocrática. Que setores são esses, os beneficiados pelas vinculações? Saúde, educação, aposentadoria, pagamento de funcionários públicos, transferência para Estados e municípios. Em suma, a própria essência do modelo federativo brasileiro e todas as despesas que retornam na forma de serviços ou pagamentos à população. Ainda há os campeões do desplante, que sustentam que a redução desses gastos é necessária para aumentar sua eficiência.
Essas destinações foram definidas pela Constituição, a lei de todas as leis, que paira sobre contratos e sobre leis ordinárias. Fala-se em "incerteza jurisdicional" e se questiona a lei maior do país, definida pelo conjunto de constituintes livremente eleitos pela população.
Depois que algum gênio da planilha cunhou o termo "incerteza jurisdicional", imediatamente entrou para a galeria dos clichês, brandido como se fosse uma inovação teórica. Acusa-se o Judiciário de estar por trás dos altos "spreads" bancários, por trazer "incerteza jurisdicional". E quem diz isso são os membros da nobre estirpe dos economistas que, com seus planos econômicos, se julgaram com poder para atropelar não apenas contratos mas leis e a própria Constituição. Quem salvou o país da "incerteza jurisdicional" dos economistas foi o juiz que ordenou a liberação de cruzados retidos pelo Plano Collor.
Para os planilhas, a única "incerteza jurisdicional" que conta é a que mexe com contratos financeiros. Aumentar impostos da noite para o dia, para pagar a conta de juros, cortar a aposentadoria ano após ano, não estabelecer limites aos níveis de juros reais, tudo isso deve ser debitado ao inevitável. Como diz o planilheiro-mór, é a realidade que se impõe. Ante esse determinismo, só resta aos crentes se voltar para Meca e rezar ao pôr-do-sol, como um bom fundamentalista.

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