São Paulo, sexta-feira, 08 de novembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

A coragem do Fed

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Uma viagem ao exterior obrigou-me a uma pausa nessa interessante experiência que é ver o PT em seu novo papel no cenário político do Brasil. Apesar da proximidade virtual que a internet permite ao viajante, o calor do debate sobre os primeiros dias do "Lula light" diminui muito, para quem está longe do país. Pude, então, durante quase uma semana, mergulhar no clima das dificuldades atuais do mundo econômico que nos cercam.
Estados Unidos e Europa vivem, já há algum tempo, dias difíceis, com uma recessão econômica que ameaça transformar-se em algo mais grave. A terrível palavra deflação pode ser encontrada amiúde, no debate econômico atual. A colossal perda de capital provocada pelo colapso das principais Bolsas de Valores do mundo nos últimos anos criou uma dinâmica recessiva nos EUA e na Europa, que ameaça jogar todos nós em um redemoinho assustador. Esse quadro agravou-se com a crise de confiança gerada pelas falcatruas descobertas em algumas das principais empresas globais dos dias de hoje. A renúncia forçada do chefe da SEC, xerife dos mercados acionários nos EUA, agravou ainda mais essa crise moral que estamos vivendo!
A indicação mais forte de que vivemos tempos bicudos veio agora do Fed, o banco central norte-americano, que reduziu sua taxa de juros de intervenção nos mercados monetários para 1,25% ao ano. Essa decisão corajosa e que surpreendeu a maioria do mercado, que esperava um corte menor, mostra que os pessimistas estão com a razão. O sr. Greenspan, do alto de seus setenta e tantos anos, não lideraria esse movimento quase desesperador se não estivesse assustado com o futuro da economia de seu país. Até as pedras sabem que o consumo dos americanos, que representa três quartos do PIB dos EUA, está sendo mantido à custa de uma bolha especulativa no mercado da casa própria e do crédito barato das hipotecas. Se esse último suspiro especulativo morrer, a economia poderá entrar em colapso imediato.
A redução dos juros decidida nesta última quarta-feira tem como objetivo tentar fazer as empresas americanas retomarem o processo de investimentos e a ampliação de seus negócios. Com o dinheiro barato, uma série de projetos pode sair das gavetas dos assustados executivos americanos e dar algum estímulo ao emprego. Mas todos sabemos, inclusive os diretores do Fed, que nessa fase do chamado ciclo econômico a política monetária tem um efeito limitado sobre o nível de atividade econômica.
Os EUA terão que usar o outro remédio clássico para situações como essa, que é o aumento do déficit público. Isso já foi feito por Bush nestes seus primeiros dois anos de governo, mas com um efeito muito pequeno sobre a economia. Guiado por uma agenda ideológica muito forte, o governo republicano reduziu os impostos dos mais ricos, deixando a grande maioria dos americanos de classe média a ver navios. Com isso, o impacto sobre o consumo foi muito pequeno, a economia não cresceu e o déficit orçamentário apareceu novamente.
Com a vitória dos republicanos nas últimas eleições para o Congresso, o caminho para um estímulo fiscal maior está aberto. Espera-se que o presidente americano venha agora com decisões que privilegiem os aspectos econômicos, em detrimento de seu discurso ideológico. Eu, particularmente, sou cético em relação a essa conversão tardia do presidente à racionalidade econômica, mas vamos ter que esperar os acontecimentos das próximas semanas para um julgamento mais definitivo.
Enquanto nos Estados Unidos o Fed dá claros sinais de entender que sua função não é apenas combater a inflação como se lutasse contra um dragão do mal, na Europa o BCE mostra mais uma vez o seu lado conservador burro. Na sua reunião desta última quinta-feira, manteve inalterada sua taxa de juros, que é hoje de 3,25% ao ano. Sua mensagem foi clara: dane-se o risco de uma recessão econômica enquanto a inflação não chegar a 2% ao ano -está hoje em 2,2% anuais-, taxa fixada como meta de sua atuação.
A autoridade monetária da Europa segue sua tradição alemã de olhar apenas para a inflação em suas decisões. Só que agora no contexto de diversas nações que não têm a mesma visão dos males da inflação, como os consumidores alemães. Não é por outra razão que já começam as críticas aos critérios macroeconômicos do Tratado de Maastrich. Um belo exemplo do rabo balançando o cachorro!
Com os juros mais elevados do que os americanos, o euro, a moeda comum, está se valorizando em relação ao dólar e dificultando as exportações para os EUA. Uma força recessiva, que vai reduzir ainda mais o crescimento no Velho Continente. Essa decisão do BCE vai agravar também o quadro fiscal na Europa, com a maioria dos países aproximando-se do limite superior do déficit público fixado pelas regras do mercado comum. Portugal foi o primeiro país a ser advertido e vai ter de reduzir despesas e aumentar impostos para manter-se no limite da lei. Alemanha e Itália estão também em situação semelhante. Com isso, uma nova força recessiva vai desenvolver-se no espaço comum europeu, agravando a situação atual. Um belo imbróglio, sem dúvida nenhuma.
Os próximos meses vão nos mostrar os caminhos da economia mundial em 2003: se o estímulo monetário e fiscal da economia americana será suficiente para reanimar sua economia -e, pelo efeito arrastão, o resto do mundo- ou se o próximo ano será ainda de crescimento muito frágil. Nesse caso, certamente os países mais ricos do mundo vão exercer uma pressão muito forte para que o BCE saia de seu transe antiinflacionário e resolva agir em conjunto com o Fed, a fim de afastar o risco de uma nova deflação mundial.
Para a economia brasileira e o governo do PT, esse cenário difícil para 2003 tem uma importância muito grande. De um lado, coloca uma restrição muito forte ao crescimento de nossas exportações e reforça a necessidade de um real ultradesvalorizado. Por outro, nos ajuda nas negociações com o FMI, já que ficou claro que uma moratória brasileira pode ser um fator de desestabilização muito forte do sistema financeiro internacional, nestes tempos bicudos. Equilibrar-se entre essas dificuldades será mais um dos grandes desafios de Lula em seu primeiro ano de governo.


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 59, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).

Internet: www.primeiraleitura.com.br

E-mail - lcmb2@terra.com.br


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