São Paulo, quarta-feira, 09 de janeiro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Argentina na sala dos espelhos

PAULO RABELLO DE CASTRO

Dependendo de qual espelho reflita a imagem do país, a Argentina terá sua face aprofundada, retorcida, afinada ou rotunda, mas nunca sua face verdadeira, após a promulgação da lei 25.561, sancionada no último dia 6, a Lei de Emergência Pública e de Reforma do Regime Cambial.
A Argentina de hoje entrou na sala dos espelhos e tenta mirar-se através das quase infinitas distorções que serão produzidas nas relações contratuais, quebradas após a chamada "pesificação", ou seja, a transformação de obrigações, antes contratadas em dólares, para a moeda nacional -pesos- ao câmbio paritário de um para um.
Nas obrigações geradas dentro do sistema financeiro, aplicou-se um teto (bastante alto, por sinal) de US$ 100 mil para mutuários de dívidas imobiliárias, pessoais, de automóveis e débitos de pequenas e médias empresas. Nas obrigações hipotecárias fora do sistema financeiro, mas sujeitas a regras do direito público (leia-se, serviços públicos concedidos), os contratos anteriores são simplesmente derrogados, para serem objeto de renegociação baseada em cinco critérios, dos quais o último é a rentabilidade das empresas e, o primeiro, a preservação da renda das famílias.
Nas obrigações, afinal, entre particulares e regidos por normas de direito privado, o artigo 11 -com grande benevolência aos devedores- transforma em pesos as dívidas denominadas em moedas estrangeiras de qualquer valor e convida as partes a se entenderem no prazo de 180 dias, a partir do qual poderão procurar mediar seu conflito na Justiça. Não se estabelecem tablitas e fica proibida qualquer forma de correção monetária ou indexação.
Vista pelo espelho liberal, neste momento, a imagem da Argentina é a de um mostro retorcido, após a supressão das cláusulas de obrigações pactuadas, inclusive aquelas sem qualquer interferência direta ou indireta do governo. É a ruptura legal, que busca evitar o rompimento institucional.
Acontece, porém, que outras graves distorções, de nível macroeconômico, foram sendo produzidas antes. O saque de depósitos continua contingenciado e, portanto, a queda brutal de atividade impede muitos bons pagadores (até ontem...) de saldar seus compromissos em dia. Portanto, o Congresso argentino apenas referendou a consequência inevitável da abolição do regime de conversibilidade, que é a ruptura do sistema de pagamentos antes baseado na confiança da paridade conversível. Esta paridade foi agora enfiada goela abaixo dos credores, devida ou indevidamente "pesificados", com todas as iniquidades de diferenciar por tipos de créditos e por tamanho da dívida.
Apesar do pisoteio do manual liberal, é forçoso reconhecer que a morte da confiança não ocorreu agora, com a edição da lei de emergência pública, e sim bem antes, quando a Argentina se recusou a fazer as correções fiscais dramáticas exigidas por um regime de "alta precisão e nível de exigência", como é um "currency board" bimonetário.
A soma dos erros, equívocos e infindáveis postergações começou ainda ao final do governo Menem, agravando-se com De la Rúa e tornando-se patética com as tentativas melodramáticas de Cavallo de renegociar dívidas sem arranhar a confiança de um sistema de alta precisão.
A Argentina de hoje é, de fato, uma caricatura num jogo de espelhos. Nem por isso o ator está perdido. A lei, distorsiva como é, abre portas importantes e fecha janelas por onde poderia atacar o inimigo inflacionário. As portas que abre são as da negociação. Prevê que o governo possa se sentar com concessionárias de serviços públicos e revisar contratos, aplicando reajustes. Ao setor privado, abre a porta das negociações bilaterais ou as escadas dos tribunais.
As janelas que fecha são, principalmente, as da indexação e da correção automáticas. Se, de um lado, no artigo 16, impede a dispensa de pessoal por 180 dias, salvo indenização em dobro, por outro lado nem aborda correção de salários ou tablitas de qualquer natureza. Acerta nisso.
Não é uma lei para a posteridade. É uma baliza de transição, que invoca o poder público para usar sua notória imprecisão e incompetência para recompor relações já defraudadas pela falência coletiva. Na circunstância de uma emergência pública, a lei devolve ao Poder Executivo poderes excepcionais. Porém, o principal está feito, ao se afastar a conversibilidade impraticável e a paridade unitária nas operações futuras.
A janela da multiplicação de moedas, que aceleraria um surto inflacionário com a emissão de "argentinos", também foi fechada. Por isso, é razoável -embora não elevada- a chance de que, numa próxima rodada legislativa, a lei 25.561 possa ser aperfeiçoada. Serve, enfim, como lição ao Brasil, no debate presidencial de 2002, já que poderemos assistir, sofrendo do camarote, ao que se passa, mais uma vez, quando um país é obrigado, por situação-limite, a interferir na coisa pactuada e substituir o mercado por decisões burocráticas e de Estado. É mais um alerta contra várias propostas de presidenciáveis com vocação redentora e interventora.


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.


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