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OPINIÃO ECONÔMICA
Argentina na sala dos espelhos
PAULO RABELLO DE CASTRO
Dependendo de qual espelho reflita a imagem do país,
a Argentina terá sua face aprofundada, retorcida, afinada ou rotunda, mas nunca sua face verdadeira, após a promulgação da lei
25.561, sancionada no último dia
6, a Lei de Emergência Pública e
de Reforma do Regime Cambial.
A Argentina de hoje entrou na
sala dos espelhos e tenta mirar-se
através das quase infinitas distorções que serão produzidas nas relações contratuais, quebradas
após a chamada "pesificação", ou
seja, a transformação de obrigações, antes contratadas em dólares, para a moeda nacional -pesos- ao câmbio paritário de um
para um.
Nas obrigações geradas dentro
do sistema financeiro, aplicou-se
um teto (bastante alto, por sinal)
de US$ 100 mil para mutuários de
dívidas imobiliárias, pessoais, de
automóveis e débitos de pequenas
e médias empresas. Nas obrigações hipotecárias fora do sistema
financeiro, mas sujeitas a regras
do direito público (leia-se, serviços
públicos concedidos), os contratos
anteriores são simplesmente derrogados, para serem objeto de renegociação baseada em cinco critérios, dos quais o último é a rentabilidade das empresas e, o primeiro, a preservação da renda das
famílias.
Nas obrigações, afinal, entre
particulares e regidos por normas
de direito privado, o artigo 11
-com grande benevolência aos
devedores- transforma em pesos
as dívidas denominadas em moedas estrangeiras de qualquer valor
e convida as partes a se entenderem no prazo de 180 dias, a partir
do qual poderão procurar mediar
seu conflito na Justiça. Não se estabelecem tablitas e fica proibida
qualquer forma de correção monetária ou indexação.
Vista pelo espelho liberal, neste
momento, a imagem da Argentina é a de um mostro retorcido,
após a supressão das cláusulas de
obrigações pactuadas, inclusive
aquelas sem qualquer interferência direta ou indireta do governo.
É a ruptura legal, que busca evitar
o rompimento institucional.
Acontece, porém, que outras
graves distorções, de nível macroeconômico, foram sendo produzidas antes. O saque de depósitos
continua contingenciado e, portanto, a queda brutal de atividade
impede muitos bons pagadores
(até ontem...) de saldar seus compromissos em dia. Portanto, o
Congresso argentino apenas referendou a consequência inevitável
da abolição do regime de conversibilidade, que é a ruptura do sistema de pagamentos antes baseado na confiança da paridade conversível. Esta paridade foi agora
enfiada goela abaixo dos credores,
devida ou indevidamente "pesificados", com todas as iniquidades
de diferenciar por tipos de créditos
e por tamanho da dívida.
Apesar do pisoteio do manual liberal, é forçoso reconhecer que a
morte da confiança não ocorreu
agora, com a edição da lei de
emergência pública, e sim bem
antes, quando a Argentina se recusou a fazer as correções fiscais
dramáticas exigidas por um regime de "alta precisão e nível de exigência", como é um "currency
board" bimonetário.
A soma dos erros, equívocos e infindáveis postergações começou
ainda ao final do governo Menem,
agravando-se com De la Rúa e
tornando-se patética com as tentativas melodramáticas de Cavallo de renegociar dívidas sem arranhar a confiança de um sistema
de alta precisão.
A Argentina de hoje é, de fato,
uma caricatura num jogo de espelhos. Nem por isso o ator está perdido. A lei, distorsiva como é, abre
portas importantes e fecha janelas
por onde poderia atacar o inimigo
inflacionário. As portas que abre
são as da negociação. Prevê que o
governo possa se sentar com concessionárias de serviços públicos e
revisar contratos, aplicando reajustes. Ao setor privado, abre a
porta das negociações bilaterais
ou as escadas dos tribunais.
As janelas que fecha são, principalmente, as da indexação e da
correção automáticas. Se, de um
lado, no artigo 16, impede a dispensa de pessoal por 180 dias, salvo indenização em dobro, por outro lado nem aborda correção de
salários ou tablitas de qualquer
natureza. Acerta nisso.
Não é uma lei para a posteridade. É uma baliza de transição, que
invoca o poder público para usar
sua notória imprecisão e incompetência para recompor relações
já defraudadas pela falência coletiva. Na circunstância de uma
emergência pública, a lei devolve
ao Poder Executivo poderes excepcionais. Porém, o principal está
feito, ao se afastar a conversibilidade impraticável e a paridade
unitária nas operações futuras.
A janela da multiplicação de
moedas, que aceleraria um surto
inflacionário com a emissão de
"argentinos", também foi fechada.
Por isso, é razoável -embora não
elevada- a chance de que, numa
próxima rodada legislativa, a lei
25.561 possa ser aperfeiçoada. Serve, enfim, como lição ao Brasil, no
debate presidencial de 2002, já
que poderemos assistir, sofrendo
do camarote, ao que se passa,
mais uma vez, quando um país é
obrigado, por situação-limite, a
interferir na coisa pactuada e
substituir o mercado por decisões
burocráticas e de Estado. É mais
um alerta contra várias propostas
de presidenciáveis com vocação
redentora e interventora.
Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a
cada 15 dias, nesta coluna.
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