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OPINIÃO ECONÔMICA
Quem está solapando a Alca?
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Preciso falar um pouco
das negociações comerciais
outra vez. Durante e depois da última reunião da Alca, em Trinidad e Tobago, na semana passada, os EUA intensificaram o bombardeio contra as posições do
Brasil e do Mercosul.
Washington está acionando os
seus prepostos na América Latina. Aqui no Brasil, a quinta-coluna, que andava meio recolhida, já
se assanhou toda. Nos últimos
dias, choveram críticas nos meios
de comunicação ao Itamaraty e
aos negociadores brasileiros. Os
nossos representantes em Trinidad e Tobago teriam sido "rígidos", "intransigentes", "ideológicos". Até integrantes do governo
brasileiro, inclusive ministros, se
prestaram ao papelão de vir a público fazer ou insinuar críticas aos
nossos representantes -isso num
momento crucial da negociação
da Alca.
É o que sempre acontece. Toda
vez que algum governo ousa defender com firmeza os interesses
brasileiros, os estrangeiros e os
seus aliados tupiniquins armam
uma tremenda intriga.
Desta vez, entretanto, a tarefa
da quinta-coluna é das mais espinhosas. A posição dos EUA na Alca é muito difícil de defender.
Os EUA insistem em que a Alca
deve ser "abrangente" e "ambiciosa", como foi pensada desde o
início. Da forma como vinha sendo negociada até 2002, a sua
agenda incluía com destaque e
grandes detalhes os temas prioritários para os EUA (redução de
tarifas sobre bens industriais, investimentos, serviços, compras
governamentais e propriedade
intelectual, entre outros).
Por exemplo, no que diz respeito a patentes, os países de uma
eventual Alca ficariam obrigados
a adotar um regime de proteção
muito rigoroso, modelado na legislação dos EUA. A idéia, evidentemente, é garantir dentro
das Américas o máximo de proteção a atividades dominadas pelos
norte-americanos, que respondem pela maior parte das patentes, inovações e marcas.
No que se refere a compras governamentais, para dar outro
exemplo, a intenção dos EUA é
impedir que países-membros da
Alca possam, em licitações públicas, definir margens de preferência para as empresas que operam
no país (nacionais e até mesmo
estrangeiras) relativamente a empresas sediadas em outros países-membros. Se a Alca estivesse em
vigor, o governo brasileiro não
poderia implementar a estratégia
de nacionalização das encomendas da Petrobras, como vem fazendo em 2003. Teria perdido um
instrumento importante de estímulo à produção e à geração de
empregos no território nacional.
Por outro lado, questões de fundamental interesse para o Brasil e
outros países latino-americanos
foram sumariamente excluídas
da Alca. Por exemplo: a livre circulação de trabalhadores nas
Américas. Os EUA não aceitam
negociar a sua restritiva política
de imigração. Os brasileiros e demais latino-americanos nem ousam levantar a questão. Se o fizessem, seriam certamente acusados
de "sabotar" a negociação.
Quanto à liberalização dos
mercados agrícolas, a resistência
dos EUA já é mais do que notória.
Querem tratar do assunto, supostamente, no âmbito da OMC, alegando que o tema é "sistêmico".
E, no entanto, quando chega a
hora de negociar agricultura na
OMC, o que fazem os EUA? Nada
mais, nada menos do que o seguinte: aliam-se aos arquiprotecionistas da União Européia e
tentam forçar goela abaixo dos
demais países uma proposta para
a agricultura que manteria o essencial dos regimes de defesa e
subsídio em vigor nos EUA e na
Europa. Foi o que aconteceu em
Cancún, suscitando a reação vigorosa e apropriada do Brasil e de
mais de 20 outros países em desenvolvimento.
Outro tema que os EUA não
querem tratar na Alca é a legislação antidumping, um dos seus
principais instrumentos protecionistas. Dizem que o assunto é da
órbita da OMC. E, no entanto, o
mandato negociador aprovado
pelo Congresso dos EUA em 2002
(a famosa "Trade Promotion Authority") exclui concessões importantes em matéria de antidumping, inclusive na OMC. Os negociadores estão obrigados, pelos
termos da lei, a "preservar a capacidade dos Estados Unidos de
aplicarem rigorosamente as suas
leis comerciais, inclusive as leis
antidumping, de direitos compensatórios e de salvaguardas, e
evitar acordos que diminuam a
efetividade de restrições nacionais e internacionais ao comércio
injusto, especialmente dumping e
subsídios (...)" ("Bipartisan Trade
Promotion Authority Act of
2002", H.R. 3.009, 2002, www.senate.gov).
Depois de tudo isso, com que
cara pode alguém acusar o Itamaraty e os negociadores brasileiros de "intransigentes", "rígidos" ou "ideológicos"? A proposta
que os EUA estão nos fazendo
-vamos dizê-lo com todas as letras- é simplesmente indecente.
No governo Lula, o Itamaraty
tem atuado até agora de forma
firme, profissional, ao mesmo
tempo prudente e corajosa. Depois de tantos anos de mediocridade e subserviência, os interesses
nacionais estão sendo defendidos.
Só uma coisa me dá pena: que o
meu pai, que teria completado 74
anos no sábado, não esteja vivo
para presenciar o renascimento
da casa a que ele dedicou a sua
vida profissional. E isso pelas
mãos de um grupo de diplomatas
cuja formação, desenvolvimento
e florescimento profissional ele
acompanhou com satisfação e orgulho.
Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A
Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net
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