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São Paulo, quinta-feira, 09 de outubro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Quem está solapando a Alca?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Preciso falar um pouco das negociações comerciais outra vez. Durante e depois da última reunião da Alca, em Trinidad e Tobago, na semana passada, os EUA intensificaram o bombardeio contra as posições do Brasil e do Mercosul.
Washington está acionando os seus prepostos na América Latina. Aqui no Brasil, a quinta-coluna, que andava meio recolhida, já se assanhou toda. Nos últimos dias, choveram críticas nos meios de comunicação ao Itamaraty e aos negociadores brasileiros. Os nossos representantes em Trinidad e Tobago teriam sido "rígidos", "intransigentes", "ideológicos". Até integrantes do governo brasileiro, inclusive ministros, se prestaram ao papelão de vir a público fazer ou insinuar críticas aos nossos representantes -isso num momento crucial da negociação da Alca.
É o que sempre acontece. Toda vez que algum governo ousa defender com firmeza os interesses brasileiros, os estrangeiros e os seus aliados tupiniquins armam uma tremenda intriga.
Desta vez, entretanto, a tarefa da quinta-coluna é das mais espinhosas. A posição dos EUA na Alca é muito difícil de defender.
Os EUA insistem em que a Alca deve ser "abrangente" e "ambiciosa", como foi pensada desde o início. Da forma como vinha sendo negociada até 2002, a sua agenda incluía com destaque e grandes detalhes os temas prioritários para os EUA (redução de tarifas sobre bens industriais, investimentos, serviços, compras governamentais e propriedade intelectual, entre outros).
Por exemplo, no que diz respeito a patentes, os países de uma eventual Alca ficariam obrigados a adotar um regime de proteção muito rigoroso, modelado na legislação dos EUA. A idéia, evidentemente, é garantir dentro das Américas o máximo de proteção a atividades dominadas pelos norte-americanos, que respondem pela maior parte das patentes, inovações e marcas.
No que se refere a compras governamentais, para dar outro exemplo, a intenção dos EUA é impedir que países-membros da Alca possam, em licitações públicas, definir margens de preferência para as empresas que operam no país (nacionais e até mesmo estrangeiras) relativamente a empresas sediadas em outros países-membros. Se a Alca estivesse em vigor, o governo brasileiro não poderia implementar a estratégia de nacionalização das encomendas da Petrobras, como vem fazendo em 2003. Teria perdido um instrumento importante de estímulo à produção e à geração de empregos no território nacional.
Por outro lado, questões de fundamental interesse para o Brasil e outros países latino-americanos foram sumariamente excluídas da Alca. Por exemplo: a livre circulação de trabalhadores nas Américas. Os EUA não aceitam negociar a sua restritiva política de imigração. Os brasileiros e demais latino-americanos nem ousam levantar a questão. Se o fizessem, seriam certamente acusados de "sabotar" a negociação.
Quanto à liberalização dos mercados agrícolas, a resistência dos EUA já é mais do que notória. Querem tratar do assunto, supostamente, no âmbito da OMC, alegando que o tema é "sistêmico".
E, no entanto, quando chega a hora de negociar agricultura na OMC, o que fazem os EUA? Nada mais, nada menos do que o seguinte: aliam-se aos arquiprotecionistas da União Européia e tentam forçar goela abaixo dos demais países uma proposta para a agricultura que manteria o essencial dos regimes de defesa e subsídio em vigor nos EUA e na Europa. Foi o que aconteceu em Cancún, suscitando a reação vigorosa e apropriada do Brasil e de mais de 20 outros países em desenvolvimento.
Outro tema que os EUA não querem tratar na Alca é a legislação antidumping, um dos seus principais instrumentos protecionistas. Dizem que o assunto é da órbita da OMC. E, no entanto, o mandato negociador aprovado pelo Congresso dos EUA em 2002 (a famosa "Trade Promotion Authority") exclui concessões importantes em matéria de antidumping, inclusive na OMC. Os negociadores estão obrigados, pelos termos da lei, a "preservar a capacidade dos Estados Unidos de aplicarem rigorosamente as suas leis comerciais, inclusive as leis antidumping, de direitos compensatórios e de salvaguardas, e evitar acordos que diminuam a efetividade de restrições nacionais e internacionais ao comércio injusto, especialmente dumping e subsídios (...)" ("Bipartisan Trade Promotion Authority Act of 2002", H.R. 3.009, 2002, www.senate.gov).
Depois de tudo isso, com que cara pode alguém acusar o Itamaraty e os negociadores brasileiros de "intransigentes", "rígidos" ou "ideológicos"? A proposta que os EUA estão nos fazendo -vamos dizê-lo com todas as letras- é simplesmente indecente.
No governo Lula, o Itamaraty tem atuado até agora de forma firme, profissional, ao mesmo tempo prudente e corajosa. Depois de tantos anos de mediocridade e subserviência, os interesses nacionais estão sendo defendidos.
Só uma coisa me dá pena: que o meu pai, que teria completado 74 anos no sábado, não esteja vivo para presenciar o renascimento da casa a que ele dedicou a sua vida profissional. E isso pelas mãos de um grupo de diplomatas cuja formação, desenvolvimento e florescimento profissional ele acompanhou com satisfação e orgulho.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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