São Paulo, domingo, 10 de maio de 2009

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Por fora das estatísticas, pobreza e desemprego crescem na Argentina

Em meio à crise, 7.500 pessoas invadem terras na periferia de Buenos Aires

THIAGO GUIMARÃES
DE BUENOS AIRES

Enquanto para o governo da Argentina a pobreza atinge o menor nível em 20 anos -um dos vários índices oficiais sob suspeita de manipulação no país-, a crise econômica viu surgir a maior invasão de terras da periferia de Buenos Aires.
Batizada Vila 17 de Novembro, a enorme favela em construção alude à data em que 7.500 pessoas tomaram uma área de 14 x 6 quarteirões (cerca de 1.400 x 600 metros) de escombros, lixo e água poluída em Lomas de Zamora, a 15 km do Obelisco.
Ali a Folha encontrou o brasileiro César Ramirez, 30, que trocou o trabalho na soja em Naviraí (MS) pela vida no entorno pobre da Grande Buenos Aires. Casou-se e teve um filho no país e agora torce pela posse da terra. Desempregado, montou uma despensa em casa onde vende "até óleo por litro, como os argentinos". "Aqui [Argentina] não tem serviço."
Ramirez e a Vila 17 de Novembro são expressões da crise econômica na Argentina, que repete o roteiro visto em outros países, com queda na atividade econômica e no comércio exterior, mas também expõe fraquezas do modelo kirchnerista -gestões Néstor (2003-2007) e Cristina Kirchner. Mostram aumento da miséria e deterioração do mercado de trabalho que números oficiais não alcançam.
Para o governo, pobreza e desemprego caíram em 2008 e chegam, respectivamente, a 15,3% e a 7,3% da população.
Para calcular o número de pobres, o governo usa o custo da cesta básica -medido com índices de inflação sem credibilidade desde janeiro de 2007, por mudanças de metodologias no Indec (o IBGE local).
"Recalculamos o custo da cesta todo mês e temos diferenças de 50% com o governo. Quando usamos essa cesta, a pobreza não diminui, mas volta a aumentar a partir de 2007", afirma o economista Ernesto Kritz, para quem 11,2 milhões de argentinos (32% da população do país) vivem abaixo da linha de pobreza.
Segundo Kritz, a crise mundial retraiu o consumo e ajudou a baixar a inflação de alimentos, maior responsável pelo avanço da pobreza. "Mas o que se poderia ter ganho com a desaceleração se perdeu na piora do mercado de trabalho."
Outro termômetro da crise argentina é o serviço estatal de conciliação obrigatória para a abertura de ações trabalhistas. No último dia 28, dezenas de pessoas se aglomeravam por atendimento em um só balcão.
"Não temos recursos humanos e materiais para atender a todos", disse o atendente Federico Vendejo. Segundo ele, 40 mil pessoas já abriram ações no serviço neste ano -60% a mais em relação a 2008.

Desemprego
Não há dados consolidados sobre demissões no país, mas desde o início da crise o governo passou a complementar em até R$ 350 os salários de 60 mil trabalhadores privados, sob o compromisso temporário de 1.200 empresas de não demitir.
Para Kritz, há pelo menos 320 mil desocupados fora das cifras oficiais. O governo diz que a economia cresceu 2,4% no primeiro bimestre deste ano -de 2003 a 2008 o PIB avançou, em média, 8% ao ano-, mas informes privados apontam recessão desde outubro.
Anunciada no verão, a bateria de medidas anticrise do governo não decolou. Centrada em créditos para a compra de carros e de eletrodomésticos, atingiu, em média, 10% das metas de vendas. "Anunciava-se um plano de troca de geladeiras, mas no dia seguinte não havia geladeiras nem financiamento", afirmou Vicente Lourenzo, da Confederação Argentina da Média Empresa.
Isolada do crédito internacional desde o calote de sua dívida, em 2002, e com empréstimos que representam apenas 12% do PIB, a Argentina sofreu pouco o contágio financeiro inicial da crise. O impacto veio com as quedas no intercâmbio comercial (30%) e no ritmo de crescimento da arrecadação, que se mantém em alta (14% em abril) pelo efeito da inflação e da estatização dos fundos privados de previdência.

Fuga de capitais
"A estatização gerou uma saída de capitais ainda maior na economia", afirma Marina Dal Poggetto, da consultoria Bein e Associados. A fuga de capitais chegou a US$ 23 bilhões em 2008 e neste ano já supera em 150% a do mesmo período do ano passado.
Dos superávits que sustentaram os anos de crescimento, o comercial se mantém pelos entraves a importações adotados pelo governo desde o início da crise -e que reduziram em 43% as vendas brasileiras ao país vizinho neste ano. Já o superávit fiscal registrou queda de 61% em março, em um cenário de gastos em alta e compromissos financeiros crescentes.
O economista Aldo Ferrer, ligado ao governo, afirma que a Argentina está longe de uma crise como a de 2001-2002. "A situação fiscal está sólida e não há problemas de dívida. O setor financeiro está sólido e solvente, e o banco central tem bom nível de reservas [US$ 46 bilhões; o Brasil tem US$ 201,5 bilhões] e capacidade de administrar o câmbio."
Longe dessa discussão e perto da crise, o brasileiro César Ramirez tem outra preocupação: o destino de seu lote invadido na Vila 17 de Novembro. Após seis meses, a área foi declarada de interesse público para desapropriação, mas a negociação do Estado com os donos das terras segue a passos lentos. "Se tudo der certo, em um ano volto para o Brasil."


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