|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Por fora das estatísticas, pobreza e desemprego crescem na Argentina
Em meio à crise, 7.500 pessoas invadem terras na periferia de Buenos Aires
THIAGO GUIMARÃES
DE BUENOS AIRES
Enquanto para o governo da
Argentina a pobreza atinge o
menor nível em 20 anos -um
dos vários índices oficiais sob
suspeita de manipulação no
país-, a crise econômica viu
surgir a maior invasão de terras
da periferia de Buenos Aires.
Batizada Vila 17 de Novembro, a enorme favela em construção alude à data em que
7.500 pessoas tomaram uma
área de 14 x 6 quarteirões (cerca de 1.400 x 600 metros) de escombros, lixo e água poluída
em Lomas de Zamora, a 15 km
do Obelisco.
Ali a Folha encontrou o brasileiro César Ramirez, 30, que
trocou o trabalho na soja em
Naviraí (MS) pela vida no entorno pobre da Grande Buenos
Aires. Casou-se e teve um filho
no país e agora torce pela posse
da terra. Desempregado, montou uma despensa em casa onde vende "até óleo por litro, como os argentinos". "Aqui [Argentina] não tem serviço."
Ramirez e a Vila 17 de Novembro são expressões da crise
econômica na Argentina, que
repete o roteiro visto em outros países, com queda na atividade econômica e no comércio
exterior, mas também expõe
fraquezas do modelo kirchnerista -gestões Néstor (2003-2007) e Cristina Kirchner.
Mostram aumento da miséria e
deterioração do mercado de
trabalho que números oficiais
não alcançam.
Para o governo, pobreza e desemprego caíram em 2008 e
chegam, respectivamente, a
15,3% e a 7,3% da população.
Para calcular o número de
pobres, o governo usa o custo
da cesta básica -medido com
índices de inflação sem credibilidade desde janeiro de 2007,
por mudanças de metodologias
no Indec (o IBGE local).
"Recalculamos o custo da
cesta todo mês e temos diferenças de 50% com o governo.
Quando usamos essa cesta, a
pobreza não diminui, mas volta
a aumentar a partir de 2007",
afirma o economista Ernesto
Kritz, para quem 11,2 milhões
de argentinos (32% da população do país) vivem abaixo da linha de pobreza.
Segundo Kritz, a crise mundial retraiu o consumo e ajudou a baixar a inflação de alimentos, maior responsável pelo avanço da pobreza. "Mas o
que se poderia ter ganho com a
desaceleração se perdeu na
piora do mercado de trabalho."
Outro termômetro da crise
argentina é o serviço estatal de
conciliação obrigatória para a
abertura de ações trabalhistas.
No último dia 28, dezenas de
pessoas se aglomeravam por
atendimento em um só balcão.
"Não temos recursos humanos e materiais para atender a
todos", disse o atendente Federico Vendejo. Segundo ele, 40
mil pessoas já abriram ações no
serviço neste ano -60% a mais
em relação a 2008.
Desemprego
Não há dados consolidados
sobre demissões no país, mas
desde o início da crise o governo passou a complementar em
até R$ 350 os salários de 60 mil
trabalhadores privados, sob o
compromisso temporário de
1.200 empresas de não demitir.
Para Kritz, há pelo menos
320 mil desocupados fora das
cifras oficiais. O governo diz
que a economia cresceu 2,4%
no primeiro bimestre deste ano
-de 2003 a 2008 o PIB avançou, em média, 8% ao ano-,
mas informes privados apontam recessão desde outubro.
Anunciada no verão, a bateria de medidas anticrise do governo não decolou. Centrada
em créditos para a compra de
carros e de eletrodomésticos,
atingiu, em média, 10% das metas de vendas. "Anunciava-se
um plano de troca de geladeiras, mas no dia seguinte não havia geladeiras nem financiamento", afirmou Vicente Lourenzo, da Confederação Argentina da Média Empresa.
Isolada do crédito internacional desde o calote de sua dívida, em 2002, e com empréstimos que representam apenas
12% do PIB, a Argentina sofreu
pouco o contágio financeiro
inicial da crise. O impacto veio
com as quedas no intercâmbio
comercial (30%) e no ritmo de
crescimento da arrecadação,
que se mantém em alta (14%
em abril) pelo efeito da inflação
e da estatização dos fundos privados de previdência.
Fuga de capitais
"A estatização gerou uma saída de capitais ainda maior na
economia", afirma Marina Dal
Poggetto, da consultoria Bein e
Associados. A fuga de capitais
chegou a US$ 23 bilhões em
2008 e neste ano já supera em
150% a do mesmo período do
ano passado.
Dos superávits que sustentaram os anos de crescimento, o
comercial se mantém pelos entraves a importações adotados
pelo governo desde o início da
crise -e que reduziram em
43% as vendas brasileiras ao
país vizinho neste ano. Já o superávit fiscal registrou queda
de 61% em março, em um cenário de gastos em alta e compromissos financeiros crescentes.
O economista Aldo Ferrer, ligado ao governo, afirma que a
Argentina está longe de uma
crise como a de 2001-2002. "A
situação fiscal está sólida e não
há problemas de dívida. O setor
financeiro está sólido e solvente, e o banco central tem bom
nível de reservas [US$ 46 bilhões; o Brasil tem US$ 201,5
bilhões] e capacidade de administrar o câmbio."
Longe dessa discussão e perto da crise, o brasileiro César
Ramirez tem outra preocupação: o destino de seu lote invadido na Vila 17 de Novembro.
Após seis meses, a área foi declarada de interesse público para desapropriação, mas a negociação do Estado com os donos
das terras segue a passos lentos.
"Se tudo der certo, em um ano
volto para o Brasil."
Texto Anterior: Barry Eichengreen: "Destino do Brasil depende da volta do crescimento nos EUA, Europa e Japão" Próximo Texto: Choque de realidade Índice
|