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OPINIÃO ECONÔMICA
Tudo é nevoeiro
RUBENS RICUPERO
Elizabeth Tessier, astróloga
de Mitterand, acaba de escandalizar os franceses ao defender na Sorbonne tese científica sobre a astrologia. Nem mesmo a
pátria da razão e do iluminismo
continua a resistir aos meios mágicos de conjurar as ameaças latentes do futuro.
Essas ameaças, escrevi seis meses atrás, começaram a crescer assustadoramente com o súbito aumento da taxa de incerteza. Basta
olhar para três zonas cruciais de
turbulência: a economia mundial, o conflito do Oriente Médio,
as perspectivas do desenvolvimento no Brasil e na América Latina.
Lembrava então que incerteza
não quer dizer que as coisas vão
necessariamente piorar. Teoricamente, a palavra é neutra e significa simplesmente que não sabemos o que nos reserva o futuro. Na
prática, não é bem assim. Temos
medo por sentirmos que nossos
meios de controle sobre a economia e a política são precários e já
se vêm mostrando incapazes de
evitar a ascensão do mal. Não é à
toa que os mercados detestam a
incerteza, mais do que qualquer
outra condição.
Tome-se, por exemplo, a economia mundial e, nesse âmbito, a
americana, que em larga medida
a determina. Aparentemente, fez-se tudo direito e na hora certa, como rezam os manuais. Greenspan
não só reagiu aos primeiros sinais
de enfraquecimento como, em rápida sucessão, desfechou cinco reduções de juros. Os indicadores semanais persistem em contradizer-se, alimentando a oscilação das
Bolsas. No entanto, imperceptivelmente, a coluna de sombras se
adensa: o déficit comercial segue
batendo recorde, o dólar forte não
ajuda, o endividamento dos consumidores mantém-se alto, desabam os investimentos, ao passo
que aumenta o desemprego e a
produtividade se enfraquece. Não
é preciso ser economista para adivinhar que esses sinais apontam
para baixo. Já não se espera aterrissagem suave; poucos são os que
crêem em recuperação rápida e
vigorosa. Os mais alarmistas falam em bolha de investimentos
excessivo, a requerer cura mais ou
menos como (em certos aspectos)
no Japão e na Ásia.
Na Europa, o panorama sofreu
evolução similar. Principiou-se
por minimizar o risco de contágio
e era de bom-tom proclamar que
a expansão européia compensaria a queda americana. Isso era
ontem. Hoje, a conversa é outra.
As más notícias não vêm só da
Alemanha, mas também da França. O rebrote do preço do petróleo
não ajuda. Embora com métodos
diferentes das autoridades monetárias americanas (ou japonesas),
o Banco Central europeu transmite a mesma impressão de perplexidade e impotência diante da
crise em progresso.
Do Oriente Médio, a televisão
nos traz a cada dia cota de horror
e insanidade pior que a da véspera, as vítimas sendo de preferência crianças e jovens. Nada nem
ninguém -a ONU, os EUA, a Europa, os árabes- parece capaz de
entreabrir janela para a esperança. A última vez em que tratei do
assunto foi antes das eleições israelenses e americanas. Desde então, nada do que aconteceu contribuiu para diminuir a incerteza
do futuro da paz nessa região estrategicamente vital.
O agravamento do conflito israelense-palestino é a principal
manifestação de fenômeno inquietante: a incapacidade do sistema internacional de encaminhar soluções pacíficas e construtivas para as grandes questões da
paz e do desenvolvimento, após a
promissora resolução de problemas complicados durante os primeiros anos de fase pós-Guerra
Fria. É como se os esforços para
resolver questões como as da
América Central, o Camboja, o
apartheid, Moçambique, a reunificação da Alemanha, a Bósnia, o
Kosovo tivessem fundido o motor
do sistema. Para o que sobrou -a
Palestina, Taiwan, Coréia do
Norte, Iraque, as guerras africanas, o Protocolo de Kyoto sobre
clima, a pobreza latino-americana-, não há mais energia, disposição ou idéias. Ora, com o sistema internacional (ou qualquer
sistema político interno) passa-se
o mesmo que com o que alimenta
de sangue fresco o coração: se
houver bloqueio, cedo ou tarde ele
explode.
É o que preocupa na América
Latina em geral e no Brasil em
particular. Não obstante todos os
concertos e recauchutagens drásticos e dolorosos, o sistema não
consegue produzir crescimento estável por mais de uns poucos anos
e muito menos redução do desemprego de massa, do crime e da
marginalidade, melhoria da qualidade de vida. Nem mostrou-se
apto a trazer paz à Colômbia, estabilidade à Venezuela, ao Peru,
ao Equador, ao Paraguai, alívio
às crises externas da Argentina.
Poucas vezes em minha vida assisti a mudança tão radical de
percepção como no Brasil desde
minha última visita em fins de
abril. Em questão de semanas, o
efeito conjugado do colapso energético e o das instituições parlamentares foi suficiente para alterar em profundidade as avaliações. Não sei se se trata da famosa
nuvem de Magalhães Pinto, que
amanhã poderia apresentar-se
com forma diferente. Só sei que
aqui nos defrontamos de novo
com o problema da incerteza.
Ansiamos por certezas, segurança, previsibilidade e ninguém expressou isso melhor do que Thomas Mann ao descrever a sensação que teve ao receber duas moedas de ouro em pagamento de sua
primeira novela. O ouro da moeda era o símbolo de um mundo de
estabilidades nas relações pessoais e sociais, políticas e econômicas, que nada parecia capaz de
abalar.
Menos de 20 anos depois, Fernando Pessoa encerrava sua
"Mensagem" com poema revelador de como se tinham acabado
aquelas certezas. Indo mais longe
que a prosa, a intuição da poesia
esclarecia a causa secreta do temor da incerteza. Em situação caracterizada como de "nem rei
nem lei, nem paz nem guerra, /
brilho sem luz e sem arder, / como
que o fogo-fátuo encerra", "ninguém sabe que coisa quer / ... nem
o que é mal nem o que é bem".
Nessas condições, "tudo é incerto
e derradeiro / tudo é disperso, nada é inteiro / ... hoje és (podíamos
dizer, somos) nevoeiro". Mas o último verso lembra que, no Portugal de 1928, ou no Brasil de 2001, a
incerteza se dissipa com a ação e a
névoa densa anuncia: "É a Hora!".
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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