São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

É hora de avaliar minhas crenças no mercado

PAUL KRUGMAN

Na quarta-feira, o governo Bush, que afirma ser a favor do livre comércio e contra a concessão de socorro financeiro, mais uma vez empregou seu dinheiro de maneira que contradiz suas próprias palavras. Há menos de duas semanas o secretário do Tesouro, Paul O'Neill, criou um incidente diplomático e provocou a queda livre da moeda brasileira quando disse que a ajuda prestada acaba ""em contas bancárias na Suíça". Agora o FMI, com a bênção de O'Neill, concordou em emprestar ao Brasil o valor inusitado de US$ 30 bilhões.
Deve ser boa notícia o fato de que nossos líderes finalmente se deram conta de duas verdades incômodas: a maior ameaça aos interesses americanos está surgindo neste hemisfério e fazer o contrário do que Bill Clinton fazia nem sempre é uma política sensata. Na realidade, se o Brasil não tivesse obtido um empréstimo, a crise financeira sul-americana, que já é comparável à que atingiu a Ásia em 1997, poderia rapidamente ter virado algo muito maior. Mesmo assim, tenho um pressentimento ruim quanto a tudo isso.
A boa notícia é que a liderança brasileira atual é altamente responsável. No passado, empréstimos do FMI foram concedidos a governos que não recolhiam impostos (Rússia) ou comprometidos com taxa de câmbio insustentável (Argentina). Comparado a eles, o Brasil é modelo de comportamento correto.
Então, por que há uma crise? Com uma eleição prevista para outubro, o sucessor escolhido pelo presidente Fernando Henrique está perdendo de longe para dois candidatos situados à esquerda do centro. Os investidores estão receosos e o resultado vem sendo uma daquelas espirais descendentes que já conhecemos bem devido à história das crises monetárias. O medo de que o governo dê o calote em sua dívida levou a moeda brasileira a cair e as taxas de juros a subir vertiginosamente.
A declaração de O'Neill foi imperdoável porque ela reforçou essa espiral descendente mortal; o empréstimo dado pelo FMI constitui uma tentativa de inverter essa espiral. O resultado final da gafe terrível de O'Neill foi provavelmente a concessão de US$ 10 bilhões adicionais ao Brasil.
Então, por que estou intranquilo? Uma razão é que existe alguma dúvida quanto a quem, exatamente, está sendo socorrido. No site cbsmarketwatch.com, Paul Erdman escreve que ""o pacote de ajuda ao Brasil também ter dado uma grande ajuda ao Citigroup e à FleetBoston, que, juntos, tinham quase US$ 20 bilhões em risco no Brasil, dificilmente passará desapercebido na hora de levantar fundos para campanhas eleitorais entre a elite de Wall Street".
Mais importante ainda: se você olhar para além da questão da estabilização financeira de curto prazo, não poderá deixar de se indagar para onde tudo isso deveria nos estar levando. As economias asiáticas estavam se saindo muito bem antes da crise delas e poderíamos pensar nos pacotes de socorro do FMI como maneira de fazê-las voltar aos eixos. Mas há uma razão pela qual a esquerda está vivendo um ressurgimento no Brasil e em outras partes da região: nós lhes prometemos um jardim de rosas, mas, mesmo antes desta crise, parte muito grande da população só recebia espinhos.
Dez anos atrás, Washington garantiu aos países latino-americanos que, se eles se abrissem para bens e capitais estrangeiros e privatizassem suas estatais, viveriam um grande crescimento econômico. Mas isso não aconteceu. A Argentina está uma catástrofe. México e Brasil eram, até alguns meses atrás, vistos como histórias que deram certo, mas a renda per capita hoje, nos dois países, está apenas um pouquinho acima do que era em 1980. E, como a desigualdade se agravou muito, a maioria das pessoas provavelmente está em pior situação do que há 20 anos. Podemos nos surpreender pelo fato de a população estar farta de ainda mais chamados por austeridade?
Também eu acreditei em boa parte do Consenso de Washington, se não em tudo; mas agora, como diz Brad DeLong, de Berkeley, é hora de avaliar minhas crenças no mercado. Não há como deixar de enxergar a razão dos líderes políticos latino-americanos que querem mitigar o entusiasmo pelos livres mercados, aumentando seus esforços para proteger trabalhadores e pobres.
O que isso me leva a crer que os EUA devem ter cuidado extremo quanto a o que esperam em troca de seu dinheiro. Afastar o Brasil da beira do abismo não significa estar de novo em condições de exigir que os latino-americanos façam as coisas à nossa maneira. Perdemos muita credibilidade com nossos vizinhos do sul. Se exagerarmos em nossa conduta, vamos perder a pouca credibilidade que ainda nos resta.


Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA) e colunista do jornal "The New York Times".

Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Morgan Stanley reduz perspectiva da dívida brasileira, Goldman sobe
Próximo Texto: Transe latino: PIB uruguaio cairá 11%; inflação vai a 40%
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.