São Paulo, sábado, 11 de janeiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A ortodoxia econômica do governo Lula

GESNER OLIVEIRA

O discurso do governo Lula está em linha com noções convencionais sobre a economia brasileira e em alguns casos com as correntes mais ortodoxas do pensamento econômico contemporâneo.
Os conceitos mais gerais talvez tenham escapado a um mercado compreensivelmente absorvido pelos números do superávit fiscal ou pela novidade da meta ajustada de inflação e seus efeitos sobre a taxa de juros.
Mas a mudança do discurso governamental foi além da discussão do curto prazo. Do ponto de vista do campo, o presidente Lula reafirmou em sua posse a tese do programa econômico de sua campanha de complementaridade entre a chamada agricultura empresarial e a familiar. Afastou-se, assim, da visão retrógrada e contrária à vocação dinâmica do agronegócio brasileiro de que as culturas de exportação seriam nocivas ao desenvolvimento nacional.
Na mesma direção, o presidente criticou "os escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos, que prejudicam os nossos produtores, privando-os de suas vantagens comparativas".
Distanciou-se, dessa forma, do protecionismo dos ricos, incluindo seus defensores mais pitorescos como José Bové, líder antiglobalização francês que andou agitando o Fórum Social de Porto Alegre em 2002, entre outras aventuras.
Também chama a atenção no discurso do presidente Lula a homenagem à noção liberal de "vantagem comparativa" de David Ricardo, um dos fundadores da economia clássica.
A definição daquilo que constituiria um novo modelo de desenvolvimento não contém nenhuma marca de marxismo ou de pós-keynesianismo. Segundo o presidente Lula, "o ponto principal do modelo para o qual queremos caminhar é a ampliação da poupança interna e da nossa capacidade própria de investimento". Trata-se de noção amplamente aceita, mas que discrepa, por exemplo, da visão de correntes pós-keynesianas, para as quais a poupança não pode ser criada antes da acumulação de capital.
Ainda segundo o presidente Lula, "o Brasil necessita valorizar o seu capital humano, investindo em conhecimento e tecnologia". Trata-se de afirmação compatível com a ênfase que a nova economia clássica e a nova teoria do crescimento, duas das principais correntes acadêmicas da ortodoxia atual, colocam sobre o progresso tecnológico.
Deixando-se levar pela saudação à bandeira petista dos últimos anos, o ministro Antonio Palocci Filho afirmou, no final dos trabalhos da equipe de transição, que o governo FHC teria apresentado uma excessiva sedução pelos mercados. Deixando de lado a política partidária, dificilmente será possível identificar grandes diferenças entre aquilo que vem sendo dito pela administração recém-empossada e o que foi feito pelo governo FHC.
Mas o ceticismo em relação aos mercados de um modo geral é correto e consistente com os melhores programas de pesquisa econômica das últimas duas décadas. A contribuição da corrente neokeynesiana tem sido precisamente a de mostrar as inúmeras imperfeições em mercados estratégicos para a formação dos macropreços da economia, como o de trabalho e o de crédito.
Quando se trata de discutir a margem de manobra que deve ser deixada para as autoridades, um dos principais temas de debate da macroeconomia durante décadas, o governo Lula tem revelado, pelo menos por enquanto, uma preferência pela adoção de regras. Restringe-se, assim, o espaço para a tomada de decisões à discrição do responsável pela política econômica. O possível apoio à autonomia do Banco Central ilustra essa atitude no terreno da política monetária.
No Brasil, tal preferência guarda pouca relação com a discussão acadêmica dos EUA de inconsistência intertemporal das decisões de política econômica. A opção pela regra decorre do problema de reputação do PT, algo relevante em uma conjuntura de aversão ao risco como a atual. Nessas circustâncias, é recomendável assumir compromisso com regras simples e transparentes. Seja como for, também na adoção de regras a macroeconomia do governo Lula se afina à ortodoxia econômica.
Rótulos à parte, o discurso econômico do novo governo merece apoio naquilo que propõe de correto. Como no caso da reforma da Previdência, tantas vezes bloqueada pela oposição no governo passado.


Gesner Oliveira, 46, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.

Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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