São Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

Grito europeu por mudança cambial na Ásia é inútil

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Os membros europeus do grupo dos sete "países mais industrializados" conquistaram uma vitória em Boca Raton, no final de semana. Mas foi só uma vitória no papel. Isso se deve em parte ao fato de que a importância do G7 vem declinando e em parte à falta de disposição, ou capacidade, de seus membros para tomar as medidas necessárias a mudar alguma coisa. O comunicado pode estar repleto de som e de fúria, mas não significa nada.
O documento parece determinado. "Reafirmamos", declara, "que as taxas de câmbio devem refletir os fundamentos econômicos. A volatilidade excessiva e os movimentos desordenados das taxas de câmbio são indesejáveis para o crescimento econômico (...) Nesse contexto, enfatizamos que mais flexibilidade cambial é desejável no caso de grandes países ou áreas econômicas em que essa flexibilidade não exista, a fim de promover ajustes suaves e generalizados no sistema financeiro internacional, com base em mecanismos de mercado."
Para os três membros do G7 que integram a zona do euro, essa linguagem retifica o equívoco do comunicado divulgado depois da reunião de Dubai, em outubro. Agora, ficou muito mais claro que as acusações são dirigidas não ao euro mas às moedas às quais falta "flexibilidade", especialmente as asiáticas. O G7 defendeu flexibilidade cambial em toda parte. Mas alguém está escutando? A resposta, quase certamente, é não.
Não é difícil compreender por que os europeus estão tão agitados. No ano passado, de acordo com as projeções da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a demanda doméstica na zona do euro teria expandido o PIB dos países integrantes em 1,2%, sem outros fatores. Mas a deterioração nos resultados líquidos do comércio externo, relacionada à disparada do euro, gerou crescimento econômico de apenas 0,5%.
Não é difícil para os europeus identificar os culpados. Entre o final de janeiro de 2002, quando o dólar começou a cair rapidamente, e outubro de 2003, as reservas cambiais mundiais foram acrescidas em US$ 831 bilhões. Desse total, US$ 611 bilhões foram acumulados pelos países asiáticos, com liderança do Japão, com US$ 219 bilhões, China, com US$ 184 bilhões, e Taiwan, com US$ 73 bilhões. O total mundial acumulado de reservas cambiais, investido primordialmente em títulos do Tesouro norte-americano, representava 2,25% do PIB do resto do mundo e 4,5% do PIB norte-americano para o período de 21 meses em questão. Esse deve ser o maior programa de "assistência" de todos os tempos, em proporção ao PIB mundial. E permitiu que os EUA travassem guerra sem se privar das vantagens da paz, evitando a necessidade de escolher entre canhões e comida.
Com o ajuste cambial mundial bloqueado pela Ásia, toda a força das mudanças terminou por se fazer sentir nas moedas que flutuam livremente nos mercados, entre as quais o euro. Os países-membros da zona do euro vêm sofrendo com o duplo problema de uma demanda interna fraca e perda de competitividade nos mercados mundiais.

Novo sistema
Por que os asiáticos estão se comportando dessa maneira? O relato mais esclarecedor foi apresentado em um estudo publicado em setembro. O velho sistema de paridades cambiais fixas criado pelos acordos de Bretton Woods se desmantelou no começo dos anos 70. Hoje, um novo sistema emergiu, parcialmente, com as economias asiáticas emergentes e, por motivos algo diferentes, com o Japão tentando preservar taxas de câmbio competitivas. É isso o que o economista australiano Max Corden classificou como "protecionismo cambial".
Como afirma o estudo, os países asiáticos "optaram pela mesma estratégia periférica que o Japão e a Europa adotaram no pós-guerra, mantendo taxas de câmbio subvalorizadas, administrando intervenções consideráveis nos mercados de câmbio, impondo controles [de capital], acumulando reservas e encorajando crescimento conduzido pelas exportações, ao enviar produtos aos países centrais competitivos".
Deixemos de lado o debate quanto à sensatez dessa estratégia. A questão é determinar se e quando ela pode ser abandonada. Parte da resposta é que não deve haver razão para esperar que qualquer desses países altere suas políticas cambiais simplesmente porque elas são inconvenientes para os europeus. Se há alguma coisa quanto à qual os asiáticos, excetuado o Japão, e os norte-americanos concordam, é o fato de que os lamurientos europeus, suas economias decrépitas e seu sistema político esclerosado estão recebendo o que merecem. Ninguém sente grande necessidade de ajudar aqueles que tão pouco fazem por se ajudar.
Os asiáticos alterarão suas políticas apenas quando o impacto do acúmulo de reservas sobre o crescimento da base monetária, crédito, inflação e acumulação de dívidas de baixa qualidade gerar riscos altamente adversos. Para os japoneses, a intervenção ajuda a superar a maldição da deflação. Para os chineses, os preços ao consumidor subiram só 3,2% nos 12 meses até dezembro. O objetivo da China continua a ser o crescimento econômico. Toda mudança de política que ameace sua realização será rejeitada.

Choque Nixon
Os EUA certamente têm a capacidade de destruir quaisquer âncoras cambiais asiáticas, se decidirem agir assim, como aconteceu com o "choque Nixon", seu pacote protecionista de 1971. Poderiam fazê-lo impondo barreiras contra as exportações asiáticas ou imprimindo dólares, para adquirir moeda asiática. Mas é bastante improvável que o façam. As boas relações com a China agora têm forte importância geopolítica para os EUA. Além disso, a disposição dos países asiáticos quanto a manter os preços dos bônus e o dólar norte-americano altos ajuda a financiar a captação vultosa que o governo e os domicílios norte-americanos realizam.
A menos que o sentimento protecionista americano se torne esmagador, não há motivo para que os EUA ataquem as políticas cambiais mercantilistas da Ásia.
Por fim, os europeus poderiam se ajudar ao aderir ao clube da intervenção. Os administradores de uma moeda sob pressão de alta podem sempre derrubá-la, imprimindo mais dinheiro, mas só se estiverem preparados para perder o controle sobre a política monetária interna. É muito pouco provável que o BCE (Banco Central Europeu) esteja disposto a fazê-lo. Talvez tome (como deveria) certas medidas modestas sentido, ao reduzir os juros. Mas, devido ao seu medo infundado da inflação, parece pouco disposto a tentar uma medida modesta como a sugerida acima.
Portanto a situação é simples. Os europeus podem querer taxas de câmbio tanto mais estáveis quanto mais competitivas. Mas as forças em ação na economia mundial hoje -o imenso duplo déficit dos EUA e o mercantilismo asiático- tornam esse desejo irrelevante. A menos que sejam sustentados por medidas determinadas, os comunicados mal valem o papel em que vêm escritos.


Tradução de Paulo Migliacci


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