|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
O relógio quebrou
RUBENS RICUPERO
No décimo aniversário da queda
do Muro de Berlim, sofremos simultaneamente a mais destrutiva
crise econômica destes 50 anos e a
mais dolorosa catástrofe de refugiados desde a Segunda Guerra. O
relógio do mundo quebrou.
E, no entanto, o fim da Guerra
Fria e do equilíbrio do terror, da
União Soviética e do comunismo
europeu prometia inaugurar o milênio da democracia perpétua e da
economia de mercado. O casamento perfeito da liberdade com a
prosperidade para todos.
O que foi que deu errado? Primeiro, a recusa a ajustar o relógio ao
ritmo do novo tempo histórico. No
passado, cada vez que desaparecia
um mundo na convulsão de um
conflito generalizado, logo se reconstruía outro, na base da realidade emergente. Assim foi no Congresso de Viena, após as guerras
napoleônicas, e em Versalhes, finda a Primeira Guerra Mundial. A
derradeira dessas reconstruções
foi, depois da Segunda Guerra, a
da ordem econômica, em Bretton
Woods, e da ordem política, em
São Francisco, com a fundação da
ONU.
Esse último intento na verdade
nunca chegou a operar direito, pois
se baseava na presunção da continuidade, entre os ex-aliados contra o Eixo (daí o nome "Nações
Unidas"), do entendimento que
depressa sucumbiu à Guerra Fria.
Algumas engrenagens acabaram
por enferrujar por falta de uso (a
cooperação entre os membros permanentes do Conselho de Segurança, por exemplo). Outras, de natureza mecânica, se revelaram incapazes de acompanhar a velocidade
de transformações de caráter eletrônico, como a volatilidade das
operações cambiais e financeiras.
Apesar disso, não se quis mexer
nem na máquina econômica nem
na política, como se os relojoeiros
disponíveis se recusassem a substituir as peças imprestáveis sob a
alegação de que é suficiente pôr um
pouco de óleo na engrenagem.
É certo que já não se fazem mais
relojoeiros como antigamente. Os
que agora dominam a praça não se
comparam aos que trabalharam
sob as ordens de Roosevelt para
criar a ONU ou de Truman para
elaborar o Plano Marshall. Basta
ver como um marreteiro vulgar como Milosevic, formado na dura escola de ferro-velho de Tito e do
Partidão, consegue aplicar-lhes
rasteiras táticas diárias, não obstante sua visível inferioridade de
meios.
O pior é que os relojoeiros de
plantão aparentemente desesperaram de consertar o relógio do mundo e preferem criar seu próprio instrumento de luxo, deixando o outro abandonado à sina desses decadentes mostradores de estações
ferroviárias com os ponteiros eternamente parados há 20 anos.
Alega-se que um aparelho exclusivo funciona melhor, dá menos
defeito e trabalho, pois não precisa
preocupar-se em sintonizar a hora
da China ou da Rússia, dos hindus
ou dos árabes, da África ou da
América Latina. É muito mais simples acertar os ponteiros apenas
dentro da faixa horária do Atlântico Norte.
É aqui justamente que mora o
problema. Democracia é o sistema
no qual o poder só é legítimo se
emana da maioria, não dos mais
ricos ou fortes. Se isso é verdade no
interior de cada sociedade, por que
não o seria também entre elas, em
relação ao sistema internacional
como um todo, que deve englobar o
universo das sociedades, pequenas
e grandes?
Por ser difícil ou pouco eficiente
tentar conciliar gente tão diversa?
Mas desde quando a eficácia é o
critério da democracia? Era esse
precisamente o argumento do fascismo, "que fazia os trens correrem
no horário" e suprimia a inútil perda de dias de trabalho devido às
greves.
Pior ainda seria pretextar que a
razão verdadeira é outra, que certos valores não valem para o mundo inteiro, mas só para alguns segmentos como as democracias mais
avançadas. Pois é somente a universalidade de alguns valores fundamentais, como os direitos humanos, a justiça social, a proteção ambiental, que justifica exigir sua observância por todos. Se assim não
fosse, como defender a imposição a
todo o mundo de valores só compartilhados por alguns? Não era isso precisamente o que faziam a Inquisição, o totalitarismo, os intolerantes de todo o gênero?
Quer dizer que temos de renunciar à universalidade democrática
em nome da eficiente defesa dos
valores? Nem uma coisa nem outra. A conciliação da aparente antinomia só pode vir do conceito de
"segurança coletiva", pedra fundamental das Nações Unidas, fonte
mais alta da legitimidade de qualquer operação internacional de
força. Fora a legítima defesa, nenhum país, nenhuma aliança militar pode arrogar-se esse direito, exclusivo da comunidade universal.
É difícil, é complicado? Sem dúvida. Mas abandonar a segurança
coletiva não garante melhor resultado. Em Ruanda e na Bósnia negou-se à ONU até uma fração insignificante dos incomensuráveis
recursos ora utilizados no Kosovo.
Será que isso permite afirmar que
tem sido menos o sofrimento dos
habitantes dessa desgraçada região? Não é esse, ao contrário, um
contra-exemplo da "ética da responsabilidade", de Max Weber,
que aconselha evitar destruir os
que se deseja salvar?
Uma das ironias da história é
que alguns dos líderes da atual
operação no Kosovo eram, nos
anos 60, jovens esquerdistas contrários à Guerra do Vietnã e que os
mais reticentes em relação à campanha da Otan são hoje homens
como Kissinger, então em posição
oposta.
Era pensando nos jovens daquela
época que Gilberto Gil anunciava:
"O relógio quebrou e o ponteiro parou", para concluir: "O sonho acabou!". Será que acabou de verdade
o sonho da paz mediante a segurança coletiva, o de uma ordem internacional construída sobre a legitimidade da maioria? E o outro
sonho, de pôr fim à pobreza, quando lemos que a ajuda aos países
mais pobres caiu ao seu ponto mais
baixo em 18 anos, no momento
mesmo em que as operações bélicas
são estimadas conservadoramente
em US$ 16 bilhões?
Continuemos assim com teimosia a acreditar que o sonho não
acabou, pois, do contrário, estaríamos ameaçados de acordar, não no
admirável mundo eficiente e asséptico da guerra da Nintendo,
mas no pesadelo de sangue, de lama, de lágrimas que já nos invade
de novo as telas de TV para lembrar que foi justamente a ilusão do
recurso à força e às alianças militares que fez deste o mais cruel e sanguinário dos séculos.
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O
Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve
aos domingos nesta coluna.
Texto Anterior: Fundo de ações volta a tentar investidor Próximo Texto: Lições contemporâneas - Maria da Conceição Tavares: O nosso dinheiro e o dinheiro deles Índice
|