São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

O relógio quebrou

RUBENS RICUPERO

No décimo aniversário da queda do Muro de Berlim, sofremos simultaneamente a mais destrutiva crise econômica destes 50 anos e a mais dolorosa catástrofe de refugiados desde a Segunda Guerra. O relógio do mundo quebrou.
E, no entanto, o fim da Guerra Fria e do equilíbrio do terror, da União Soviética e do comunismo europeu prometia inaugurar o milênio da democracia perpétua e da economia de mercado. O casamento perfeito da liberdade com a prosperidade para todos.
O que foi que deu errado? Primeiro, a recusa a ajustar o relógio ao ritmo do novo tempo histórico. No passado, cada vez que desaparecia um mundo na convulsão de um conflito generalizado, logo se reconstruía outro, na base da realidade emergente. Assim foi no Congresso de Viena, após as guerras napoleônicas, e em Versalhes, finda a Primeira Guerra Mundial. A derradeira dessas reconstruções foi, depois da Segunda Guerra, a da ordem econômica, em Bretton Woods, e da ordem política, em São Francisco, com a fundação da ONU.
Esse último intento na verdade nunca chegou a operar direito, pois se baseava na presunção da continuidade, entre os ex-aliados contra o Eixo (daí o nome "Nações Unidas"), do entendimento que depressa sucumbiu à Guerra Fria. Algumas engrenagens acabaram por enferrujar por falta de uso (a cooperação entre os membros permanentes do Conselho de Segurança, por exemplo). Outras, de natureza mecânica, se revelaram incapazes de acompanhar a velocidade de transformações de caráter eletrônico, como a volatilidade das operações cambiais e financeiras. Apesar disso, não se quis mexer nem na máquina econômica nem na política, como se os relojoeiros disponíveis se recusassem a substituir as peças imprestáveis sob a alegação de que é suficiente pôr um pouco de óleo na engrenagem.
É certo que já não se fazem mais relojoeiros como antigamente. Os que agora dominam a praça não se comparam aos que trabalharam sob as ordens de Roosevelt para criar a ONU ou de Truman para elaborar o Plano Marshall. Basta ver como um marreteiro vulgar como Milosevic, formado na dura escola de ferro-velho de Tito e do Partidão, consegue aplicar-lhes rasteiras táticas diárias, não obstante sua visível inferioridade de meios.
O pior é que os relojoeiros de plantão aparentemente desesperaram de consertar o relógio do mundo e preferem criar seu próprio instrumento de luxo, deixando o outro abandonado à sina desses decadentes mostradores de estações ferroviárias com os ponteiros eternamente parados há 20 anos.
Alega-se que um aparelho exclusivo funciona melhor, dá menos defeito e trabalho, pois não precisa preocupar-se em sintonizar a hora da China ou da Rússia, dos hindus ou dos árabes, da África ou da América Latina. É muito mais simples acertar os ponteiros apenas dentro da faixa horária do Atlântico Norte.
É aqui justamente que mora o problema. Democracia é o sistema no qual o poder só é legítimo se emana da maioria, não dos mais ricos ou fortes. Se isso é verdade no interior de cada sociedade, por que não o seria também entre elas, em relação ao sistema internacional como um todo, que deve englobar o universo das sociedades, pequenas e grandes?
Por ser difícil ou pouco eficiente tentar conciliar gente tão diversa? Mas desde quando a eficácia é o critério da democracia? Era esse precisamente o argumento do fascismo, "que fazia os trens correrem no horário" e suprimia a inútil perda de dias de trabalho devido às greves.
Pior ainda seria pretextar que a razão verdadeira é outra, que certos valores não valem para o mundo inteiro, mas só para alguns segmentos como as democracias mais avançadas. Pois é somente a universalidade de alguns valores fundamentais, como os direitos humanos, a justiça social, a proteção ambiental, que justifica exigir sua observância por todos. Se assim não fosse, como defender a imposição a todo o mundo de valores só compartilhados por alguns? Não era isso precisamente o que faziam a Inquisição, o totalitarismo, os intolerantes de todo o gênero?
Quer dizer que temos de renunciar à universalidade democrática em nome da eficiente defesa dos valores? Nem uma coisa nem outra. A conciliação da aparente antinomia só pode vir do conceito de "segurança coletiva", pedra fundamental das Nações Unidas, fonte mais alta da legitimidade de qualquer operação internacional de força. Fora a legítima defesa, nenhum país, nenhuma aliança militar pode arrogar-se esse direito, exclusivo da comunidade universal.
É difícil, é complicado? Sem dúvida. Mas abandonar a segurança coletiva não garante melhor resultado. Em Ruanda e na Bósnia negou-se à ONU até uma fração insignificante dos incomensuráveis recursos ora utilizados no Kosovo. Será que isso permite afirmar que tem sido menos o sofrimento dos habitantes dessa desgraçada região? Não é esse, ao contrário, um contra-exemplo da "ética da responsabilidade", de Max Weber, que aconselha evitar destruir os que se deseja salvar?
Uma das ironias da história é que alguns dos líderes da atual operação no Kosovo eram, nos anos 60, jovens esquerdistas contrários à Guerra do Vietnã e que os mais reticentes em relação à campanha da Otan são hoje homens como Kissinger, então em posição oposta.
Era pensando nos jovens daquela época que Gilberto Gil anunciava: "O relógio quebrou e o ponteiro parou", para concluir: "O sonho acabou!". Será que acabou de verdade o sonho da paz mediante a segurança coletiva, o de uma ordem internacional construída sobre a legitimidade da maioria? E o outro sonho, de pôr fim à pobreza, quando lemos que a ajuda aos países mais pobres caiu ao seu ponto mais baixo em 18 anos, no momento mesmo em que as operações bélicas são estimadas conservadoramente em US$ 16 bilhões?
Continuemos assim com teimosia a acreditar que o sonho não acabou, pois, do contrário, estaríamos ameaçados de acordar, não no admirável mundo eficiente e asséptico da guerra da Nintendo, mas no pesadelo de sangue, de lama, de lágrimas que já nos invade de novo as telas de TV para lembrar que foi justamente a ilusão do recurso à força e às alianças militares que fez deste o mais cruel e sanguinário dos séculos.


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.


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