São Paulo, Domingo, 11 de Abril de 1999
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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O nosso dinheiro e o dinheiro deles

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Pronto! Uma volta a mais na "ciranda financeira internacional" que capturou o Brasil na armadilha do endividamento externo contínuo e o pessoal já está soltando foguetes de novo.
Se fosse só o pessoal deles, que joga com o "nosso dinheiro" como se estivesse num cassino viciado, ainda vá lá. Infelizmente, os nossos ex-burgueses associados ou "dependentes" também entraram na roleta russa. Na ânsia de seguir o jogo global e de se converter em conglomerados poderosos, vários deles se endividaram em centenas de milhões de dólares e agora pagam as penas do jogo: serão devidamente esquartejados e desnacionalizados pelo tão almejado "investimento direto" necessário para fechar as contas externas neste ano da (des)graça de 1999.
Não há por que chorar pela perda do dinheiro deles, convertidos quase todos em rentistas individuais multimilionários. Sim, mas o que fazer com as perdas causadas ao setor público e ao povo brasileiro em geral? Traduzindo: o que faremos para recuperar o "nosso dinheiro" e o emprego da nossa gente?
Com a depreciação cambial, muitos se congratularam por estarmos finalmente libertos do círculo vicioso que impedia o nosso crescimento. Doce ilusão! Aí voltam à carga os donos do pensamento único que aceitam a recessão, a continuidade do "financiamento" externo com capital especulativo e a desnacionalização completa como uma fatalidade ou até mesmo como uma benesse.
Com a morte do real forte, instalou-se o medo da catástrofe -inflação descontrolada, quebradeira generalizada ou moratória das dívidas internas e externas- que assolou os dias e as noites das pessoas bem intencionadas deste país. Esse sentimento de pânico levou quase todas as elites do "mercado" e fora dele a celebrar com alívio a renovação do acordo com o FMI. Todos parecem ter aceitado, de alma leve, as espinafrações do diretor do Fundo que não pouparam ninguém, desde o ex-quase presidente do BC ao presidente da República.
O primeiro, coitado, saiu como bode expiatório das estripulias e conivências das nossas "autoridades monetárias" com o "mercado". Pelo andar da carruagem, será talvez a única vítima moral da famosa CPI dos Bancos, que, pelas declarações do nosso presidente, não assusta ninguém. Aliás, como confessou em entrevista recente ao "Jornal do Brasil", o primeiro mandatário só perdeu mesmo o sono quando o Congresso em dezembro passado não votou a espoliação dos aposentados. Estes, que só contam como números no "nosso" ajuste fiscal permanente, além de terem uma alegria de pouca duração ainda foram considerados o estopim da crise cambial!!
O Veríssimo tem razão: o cinismo é contagioso. As piadas chulas que circulam no "mercado" -refastelado com os bilhões de lucros nas mudanças de posições no mercado futuro à véspera da desvalorização cambial- dão prova disso. As piadas não são publicáveis, mas podem ser traduzidas pelo seguinte mote: podem bater desde que voltem.
Pois bem, o "dinheiro deles" bateu pesado no "nosso pobre dinheiro", mas voltou sob a asa protetora do novo empréstimo do Fundo e sua vigilância draconiana. Voltaram a operar no Brasil com a desenvoltura de quem está num "paraíso fiscal". Desta vez as "regras de convivência" impostas pelo dinheiro deles são explícitas: nada de imposto, nada de controles, e aceitem a distribuição de carteira que mais interessar ao cassino. O nosso(?) Banco Central acompanha as instruções coordenadas dos três grandes: Citibank, Morgan e Merryl Lynch. Eles indicam o casamento das posições no mercado futuro, fazem a primeira movida e todos os piranhas nacionais e internacionais vão atrás.
O capital especulativo, devidamente monitorado, se esbaldou em março! Entraram US$ 750 milhões em "nossas" Bolsas, puxando os preços desbaratados em dólar das "blue chips", teles, elétricas e Petrobrás, reforçando a subida prévia das ADRs na Bolsa de Nova York. Entrou também US$ 1,9 bilhão de aplicação em títulos de renda fixa, com um cupom em dólar de fazer água na boca (deles). Não contentes com isso, pediram os bons serviços do BC para gastar US$ 1 bilhão das "novíssimas reservas" em pré-pagamentos no mercado secundário de bradies, o que ajudou e muito os detentores privados desses títulos.
É assim que se cumpre o cronograma de intervenção no mercado de câmbio pautado no novo acordo com o FMI até julho. O resto é conversa fiada.
E a depreciação cambial não surtiu efeito sobre as exportações? Nenhum até agora. Os preços em dólares das commodities caíram e o valor das exportações captado pelos produtores foram para o brejo, o que, se bem ajuda a combater a inflação, não é nada bom para a renda nacional nem para produzir o almejado ajuste do balanço em transações correntes. A reversão do déficit comercial está sendo feita à custa de uma recessão cavalar da indústria, que cortou drasticamente as importações de matérias-primas e de partes e peças, e será lida no futuro por algum economista desavisado como "substituição de importações".
Não dá para ver tantos bons amigos de alma pura serem convencidos de que o pior já passou e que uma nova bolha de capitais especulativos garantiria uma expansão de crédito que nos permitiria retomar o crescimento com tranquilidade. E ainda ter de aturar (de novo!) a propaganda de que os fiadores da "nossa" credibilidade são outra vez as reformas fiscal e da Previdência que "eles" querem nos impingir!
Vou entrar em recesso espiritual. Quero deixar de ler jornais (ao menos por um mês) e concentrar-me na releitura dos meus velhos textos do "Auge e declínio da substituição de importações ao capitalismo financeiro", passando pelo "Além da estagnação" que escrevi a quatro mãos com o Serra.
Quem sabe assim ganhe ânimo para explicar aos meus novos alunos, que ainda não tinham nascido quando escrevi esses textos, as armadilhas que pesam sobre o nosso futuro: a novíssima substituição de importações sem crescimento do mercado interno. A nova onda de privatizações e desnacionalização do que sobra da indústria e dos bancos nacionais, conduzindo à mais gigantesca acumulação e centralização do capital financeiro (deles), à custa de um encilhamento sem precedentes das (nossas) contas públicas. De como está sendo produzido neste país um rentismo de novo estilo capaz de deixar pálida de inveja a "burguesia compradora" dos velhos tempos e matar de susto, se estivesse vivo, o velho Keynes.
Definitivamente, preciso escrever um outro "Além da estagnação" com novos companheiros de jornada. Terei de reunir todas as energias utópicas de luso-brasileira para tentar celebrar os nossos 500 anos (de Cabral ao Capitalismo Virtual) e ajudar os muitos jovens a recuperar a nossa difícil memória histórica. De preferência antes que acabem de vez com o "nosso dinheiro" e a nossa esfarrapada soberania.


Maria da Conceição Tavares, 68, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal (PT-RJ).
www.abordo.com.br/mctavares
e-mail: mctavares@cdsid.com.br


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