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LUÍS NASSIF
Os vereadores e o bem público
No domingo passado falei de
meu avô Issa Sarraf, udenista, lacerdista e vereador. Era uma designação importante essa: vereador. Vô Issa foi presidente da Associação Comercial, mas, cá para
mim, gostava mesmo da vereança, e não apenas por essas questões de status.
Vô Issa era meu tipo inesquecível. Alto, bonito, de uma simpatia
contagiante, embora comedida,
sempre foi um batalhador. Na Revolução de 32 era secretário da
Prefeitura de São Sebastião da
Grama, e teve que fugir para a roça, com minha mãe com 6 anos e
mais os três ou quatro filhos (da
lista de dez que faria ao longo de
sua vida), perseguidos pelas tropas mineiras, um pessoal de Caratinga que deixou muito má impressão e marca de bala na cidade.
Em Poços de Caldas, mesmo, deram muito trabalho quando cismaram que a cidade era muito
perdulária para períodos de guerra, gastando toneladas de anilina
para colorir as águas da Fonte Luminosa. Foi um trabalho danado
explicar que a cor vinha de lâmpadas coloridas.
Passada a fase crítica da guerra,
vô Issa se instalou em Poços, indo
trabalhar na Casa Rocha, de secos
e molhados. Depois, ficou dono da
casa, quando seu Rocha resolveu
se aposentar. Mais tarde, ficou
doente, três meses fora do ar, a
maçonaria providenciou um sócio sério, mas com pouca prática
de negócio, que pulverizou seu capital de giro, obrigando-o a se tornar dono de bar e restaurante.
Tornou-se um especialista em leis
municipais, sendo consultado seguidamente por prefeitos e advogados.
Mas eu falava do exercício da
vereança, e vô Issa era vereador
de uma cidade de pouco mais de
40 mil habitantes. Participava de
duas ou três sessões por semana,
levava as pastinhas dele para trabalhar em casa, e não recebia nenhum tostão pelo ofício.
Digo que o nível da Câmara daqueles tempos era dos melhores,
não pela posição social dos vereadores, mas por seu espírito público. Mesmo para um menino de 6 a
8 anos, dava gosto ouvir vô Issa
falar das providências que tomavam para resolver desde problemas que surgiam nas estradas
municipais até para repreender o
delegado truculento que ousou
agredir um cidadão local, achando que Poços era a casa da sogra.
Não diria que fosse tudo uma
maravilha, mas havia fiscalização. O principal fiscal, aliás, era o
Lazinho, funcionário do Querosene -dono da barbearia local e
membro honorário da Banda do
Maestro Azevedo-, que assistiu
a todas as sessões da Câmara durante 40 anos. Seu único inconveniente, como ombudsman da cidade, é que jamais comentou nada com ninguém, porque não tinha por hábito falar da vida
alheia.
Certa vez, quase teve cena de tiro entre dois dos mais ilustres vereadores locais. Presidia a Câmara o gerente regional do Crédito
Real, pessoa muito querida na cidade, e um dos oposicionistas
mais combativos era o Ademar de
Souza e Silva.
Gordo, o presidente tinha por
hábito presidir as sessões com o
cinto solto e os primeiros botões
da calça abertos. Pois o dr. Ademar resolveu desafiá-lo para uma
discussão, que resultou em briga.
O presidente levantou-se da mesa,
extremamente ágil para seu tamanho, mas muito distraído para
sua função, tanto que, quando
pulou o tablado, a calça se enganchou na quina da mesa, vindo parar nos joelhos, fazendo com que
ele fosse se esparramar no meio do
salão, impedido de se locomover.
Diria que foi certo gesto de oportunismo do dr. Ademar aproveitar-se daquela posição infeliz do
presidente para sapecar-lhe uns
três pontapés no traseiro, que machucaram horrivelmente seu
amor próprio, embora não tivesse
deixado uma marca sequer no local atingido. Pois foi no bar do vô
que quase saiu o duelo, prudentemente evitado por sua intervenção.
Às vezes tinha briga por bobagem. Anos depois do vô Issa ter
largado a política, o Jeremias do
Amaral, amigo do pessoal, apresentou um voto na Câmara para a
construção de um "monumento à
Bíblia". O escultor local fez um
baita de um livro de pedra, aberto, uma folha em branco. Deu-se
enorme discussão na Câmara
porque a bíblia podia ser tudo,
menos livro em branco.
Aí decidiram ir ao local o prefeito Sebastião Pinheiro Chagas e todos os vereadores, para definir a
frase que iria no livro. Sobrinho
do Carlos Pinheiro Chagas, o tremendo orador que, com seu discurso, na chegada ao Rio do corpo
de João Pessoa, ajudou a deflagrar a Revolução de 30, Sebastião
sugeriu "Fiat Lux". E Jeremias,
que não era bobo, e além disso tinha nome de profeta, pulou nos
tamancos: "Eu tenho a idéia e você quer passar o mérito para o
Chiquito? ". Chiquito Luz, presidente da Câmara, era dono da
concessionária Fiat.
Outro dia, o Olavo Drummond,
prefeito de Araxá, homem que conheceu todos os brasileiros seus
contemporâneos e mais as duas
gerações seguintes, falava dos vereadores de hoje, pessoal complicado, muitos deles seguindo a carreira política apenas atrás de salários, fora os que transformaram
a casa em balcão de negócios.
Lembrava Olavo que, no seu tempo, o máximo que vereador recebia era isenção do pagamento de
IPTU.
Pensei cá comigo será que, se vivo fosse, vô Issa voltaria à vereança? Voltaria sim, mas só quando
acabassem com essa história de
vereador ganhar subsídios, e a vereança se tornasse o lugar para
homens públicos exercitarem a
busca do bem comum.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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