São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O discurso e a realidade

ALOIZIO MERCADANTE "Que oportunidade mais consagradora pode um político ambicionar do que a de entregar seu país melhor do que encontrou ao assumir uma importante função pública? Por outro lado, que frustração poderia ser mais amarga do que a de deixar escapar essa oportunidade?"
Fernando Henrique Cardoso
Mensagem ao Congresso Nacional
15 de fevereiro de 1995

Na mensagem ao Congresso Nacional, em fevereiro de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconhecia que as condições eram bastante favoráveis para o desenvolvimento do Brasil -tanto pelo êxito inicial do programa de estabilização como pelo cenário então existente de farta liquidez internacional. Cito: "Meu governo nasce, portanto, firmemente comprometido com a consolidação do Plano Real e o aprofundamento das reformas que darão sustentação ao crescimento econômico inaugurado nos últimos dois anos. (...) As expectativas em relação ao Brasil são amplamente favoráveis, tanto da parte dos investidores nacionais como dos estrangeiros. Mais do que expectativas, há projetos de investimento em andamento, e em número crescente."
Os dois últimos anos a que se referia o presidente eram 1993 e 1994, quando o país cresceu, em média, 5,02% ao ano. Mas as "reformas" não sustentaram o crescimento. Pelo contrário, no período de 1994 a 1998 a taxa anual de incremento do PIB real caiu para 2,56% anuais.
Quatro anos depois, em nova mensagem ao Congresso, ainda sob os efeitos da crise cambial de janeiro de 1999, declarava o presidente: "Queremos um país com níveis de desenvolvimento à altura do seu potencial e das necessidades do nosso povo. As transformações dos últimos quatro anos -as reformas estruturais da economia, incluindo as privatizações, as retomadas dos investimentos em infra-estrutura, a recuperação da capacidade de atuação dos bancos federais, o saneamento do sistema bancário privado e os avanços na educação e na qualificação de mão-de-obra- prepararam o Brasil para uma nova arrancada de desenvolvimento. Temos tudo para crescer e vamos voltar a crescer a taxas expressivas, na medida em que a consolidação do ajuste fiscal nos permita superar decididamente a turbulência financeira do momento e reduzir a taxa de juros".
A realidade, teimosamente, desmentiu de novo o discurso: nem as medidas citadas pelo presidente "prepararam" o país para o crescimento nem o ajuste fiscal permitiu superar as "turbulências do momento". A taxa de juros caiu em 2000, mas voltou a subir em 2001 e em 2002 e o crescimento médio anual do PIB no período de 1999 a 2001 foi de 2,22%, inferior ao do quadriênio anterior. As projeções para 2002 são que o PIB cresça algo em torno de 1,5%, com o que a taxa média do segundo governo FHC não passaria de 2,04% anuais.
No total, lá se vão quase oito anos de discursos e de propaganda bastante dispendiosa sobre as maravilhas do atual governo, as virtudes das "reformas" e os "avanços" do Brasil, mas o que se vê, na prática, é a renovação periódica de uma promessa -nunca cumprida- de desenvolvimento e bem-estar social.
O quadro dentro do qual transcorreu recentemente o oitavo aniversário do Real é, nesse sentido, simbólico. Nossa ex-moeda forte vive, desde o ano passado, um processo errático de desvalorização, que já levou a cotação do dólar à casa dos R$ 3 e não há evidências de que o mercado caminhe para uma situação estável de menor volatilidade. A recuperação do saldo comercial é precária, dado que as exportações diminuíram -só que em menor proporção do que as importações. A indústria teve em maio passado seu pior desempenho desde 1995, com queda de quase 6%. E os enormes superávits primários que o país vem obtendo -foram R$ 44 bilhões no ano passado- à custa de cortes em investimentos e em programas sociais, embora reduzam a velocidade de deterioração da situação fiscal, têm sido impotentes diante do tamanho da conta de juros -R$ 106 bilhões em 2001- para reverter as tendências de aumento da relação entre a dívida e o PIB.
Da ótica social, a situação é ainda mais dramática. A taxa de desemprego total aumentou em todo o país, superando, em alguns casos, como na região metropolitana de São Paulo, a casa dos 19%. Os rendimentos dos empregados vêm caindo continuamente desde 1997, praticamente eliminando os ganhos derivados do impacto inicial da estabilização de preços e do miniciclo de crescimento que se seguiu à reforma monetária. Aumentou a concentração da renda, assim como a desigualdade social e o número de famílias em situação de indigência ou abaixo da linha de pobreza. A violência atingiu níveis inaceitáveis -no ano passado foram cerca de 43 mil mortes por homicídio, então a principal causa da morte de jovens nas áreas urbanas-, e permaneceram precários, quando não se deterioraram, os serviços de seguridade e proteção social da população.
A crise que o país vive neste momento é a expressão do esgotamento de um modelo que fragilizou a economia e o Estado brasileiro, reduzindo nossa liberdade de gestão da política econômica. Tal esgotamento se deve tanto ao agravamento dos desequilíbrios no interior da economia como ao desaparecimento de duas das condições que permitiram, nos anos 90, viabilizar sua implantação: o forte aumento na liquidez internacional ocorrido naqueles anos, que pôs à disposição dos países emergentes uma massa significativa de recursos externos em busca de valorização, e a expansão sustentada da economia norte-americana, que possibilitou um notável aumento das correntes de comércio internacional, muito superior ao crescimento econômico mundial no período.
O atual modelo de política econômica foi incapaz de produzir um crescimento satisfatório da economia brasileira quando as condições externas eram favoráveis. Com o novo cenário internacional, sua lógica aponta para a regressão econômica e para a crise social. Será esse o "rumo" que o governo Fernando Henrique Cardoso comemora ter dado ao país?


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.
Internet: www.mercadante.com.br
E-mail - dep.mercadante@ camara.gov.br


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