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OPINIÃO ECONÔMICA
A assembléia geral do medo
RUBENS RICUPERO
Escolhida devido ao temor
dos protestos antiglobalização, a reunião de Doha da Organização Mundial do Comércio
(OMC) realiza-se sob o signo de
medo diferente: o de algum atentado dos terroristas fundamentalistas. Meus colegas da OMC só
foram persuadidos a comparecer
mediante seguro de vida especial
de US$ 500 mil para cada um.
Quando os leitores lerem o artigo que escrevo antes de partir, espero ter já falado em nome da
ONU na sessão inaugural e estar
de volta a Genebra, libertando-me do meu próprio medo. Ao menos dessa última encarnação particular de ameaça que se espalha
por todos os domínios da vida, faz
os aviões voarem semivazios, os
turistas cancelarem suas reservas,
o FMI anular a sua reunião e o
Fórum de Davos mudar-se para
Nova York.
Vem isso adicionar-se aos medos preexistentes: o do antraz, da
varíola, do terrorismo nuclear,
contra as pontes de San Francisco, o dos gases venenosos, da vaca
louca. Uma das muitas loucuras
da nossa orgulhosa "civilização"
é justamente esse paradoxo: os
militares, profissionais do risco,
tornaram-se quase invulneráveis,
ao mesmo tempo em que os governos mostram-se cada vez menos capazes de garantir um mínimo de segurança individual às
populações civis.
Outro paradoxo é o da própria
região em que se realiza o encontro da OMC. O golfo Pérsico, pátria dos emirados, é das zonas do
mundo menos participantes do
comércio. Dependentes quase exclusivos do petróleo, os países do
Golfo, em sua maioria, inclusive a
Arábia Saudita e o Irã, nem são
membros da OMC. Não deixa de
ser irônico que, se o comércio é a
panacéia universal para todos os
males, como se alardeia, sua assembléia geral tenha de se fazer a
portas fechadas, em país de difícil
acesso, quase sem sociedade civil,
longe dos olhos e da participação
das pessoas que são supostamente
suas principais beneficiárias.
Ainda mais quando um dos argumentos utilizados em abono do
lançamento de novas negociações
comerciais é que elas são necessárias para combater a recessão. O
exagero é evidente, pois salta aos
olhos que o desemprego, a redução da atividade econômica e do
consumo, o corte dos investimentos são os fatores que explicam o
desaparecimento da demanda
por importações. O comércio não
é elemento autônomo. Para ativá-lo, mais importantes que negociações, cujo efeito só se fará
sentir a médio e longo prazo, são
as medidas de redução de juros e
gastos orçamentários tomadas
pelo governo americano.
Reduzida a dimensão mais realista, a utilidade das negociações
deveria manifestar-se sobretudo
como meio de contra-arrestar o
medo do protecionismo. Para isso, no entanto, seria necessário
enfoque prioritário nos setores como o aço e a proteção agrícola,
em que as pressões não são hipotéticas, mas estão prestes a produzir efeitos. Dois exemplos bastam.
No caso do aço, o secretário do
Tesouro dos EUA está promovendo, entre os 39 maiores países produtores, negociações cujo objetivo
é reduzir a capacidade instalada
e a oferta, a fim de permitir a sobrevivência da indústria siderúrgica americana. Em relação à
agricultura, a Câmara dos Representantes (deputados) acaba de
aprovar, por esmagadora maioria, o projeto de nova lei agrícola
americana, ora no Senado e para
vigorar até 2011. Se confirmada
na forma atual, a lei poderá elevar a US$ 409 bilhões as despesas
com o apoio do governo aos 2 milhões de produtores rurais americanos. Ora, nesses dois setores não
há sinais de que a reunião de Doha se apreste a fazer algo de significativo.
Não significa isso que ela se revelará inútil ou perniciosa, desde
que as expectativas sejam trazidas das nuvens da retórica para a
realidade dos interesses estreitos
dos negociadores comerciais.
Sempre recusei-me a usar expressões como "Rodada do Desenvolvimento". Não porque não a deseje em sonhos, mas por saber que
os poderosos não hão de permitir
que uma rodada de negociações
seja dominada por esse tipo de
considerações. O que move os
grandes são preocupações de outra ordem, certamente legítimas,
tais como a solução dos conflitos
comerciais entre EUA e Europa
ou desses dois com o Japão. O máximo a que se deve aspirar, nessas
condições, é ao lançamento de
tratativas que reservem aos interesses dos subdesenvolvidos lugar
central ao menos equivalente às
propostas dos países mais avançados.
Uma nova rodada só merecerá
a invocação do desenvolvimento
se, ao final, atingir dois objetivos:
1º) não aumentar o medo dos vulneráveis, ao impor-lhes novas e
exageradas obrigações; 2º) corrigir os desequilíbrios do atual sistema, liberalizando áreas do interesse dos menos avançados e até
hoje excluídas (agricultura, têxteis, produtos sensíveis, mão-de-obra etc.).
Dentro desse mesmo espírito de
comedimento e senso de proporções, penso ser interesse do Brasil
que a reunião de Qatar inicie negociações capazes de completar e
equilibrar as da Alca. Não é segredo que os EUA dificilmente negociarão no âmbito hemisférico assuntos que consideram globais,
mas em que se concentram muitas das barreiras enfrentadas pelas exportações brasileiras: aço,
antidumping, direitos compensatórios, salvaguardas, açúcar, etanol, tabaco, suco de laranja, proteção doméstica ao algodão. Corremos, assim, o risco de ter o pior
de dois mundos: uma zona de livre comércio que inclua os setores
nos quais temos dificuldade de
competir e deixe de fora as áreas
nas quais somos competitivos.
Combater tais perigos exige garantir que os temas do interesse
brasileiro sejam seriamente negociados no foro multilateral da
OMC, em que a presença de
maior número de países em desenvolvimento diminui um pouco
a avassaladora supremacia americana na Alca. Os dois processos,
o multilateral e o hemisférico, deveriam ser simultâneos e sintonizados para permitir-nos, na conclusão, calibrar nossas concessões.
Pode não parecer grande coisa,
mas quem sabe se não conseguiremos desse modo reagir ao medo
de negociar que nos paralisa?
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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