São Paulo, quarta-feira, 11 de dezembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Asas para Lula

PAULO RABELLO DE CASTRO

Os desafios à espera de Lula podem ser medidos pela conjunção de adversidades que enfrentará desde seu primeiro dia de trabalho na Presidência da República. Não terá o Plano Real a seu favor, como o teve FHC no seu primeiro mandato. O real, como moeda, começa a se derreter como bola de sorvete exposta ao sol de verão. Possivelmente, Lula terá de se conformar com a fixação de uma meta inflacionária de quase dois dígitos em 2003, para tentar voltar a trazer os preços rebelados, numa "escadinha" descendente, até a faixa de 3% a 5% de variação, lá em 2006.
Mas nada se compara ao seu desafio externo. Muito ao contrário de FHC, que pegou céus mais favoráveis na frente externa -uma economia internacional vibrante até o ano 2000, embora com crises localizadas e percalços variados-, a vez de Lula chega com todos os ingredientes de uma desaceleração mundial sincronizada, com os Estados Unidos, a Europa e o Japão sem perspectiva imediata de uma retomada vigorosa, apenas para ser brando no prognóstico...
Mas a questão é que o compromisso de Lula não fica na defesa da moeda e da estabilidade dos preços nem apenas na defesa financeira do país, perante o cenário ruim que defrontará. Essas seriam as condições básicas para cumprir seu compromisso maior: crescimento da renda e dos empregos.
Será algo extremamente complicado formular, articular na prática e, então, executar a política econômica na velocidade requerida. Tudo parece conspirar na direção contrária ao sucesso. Os mercados, na melhor das intenções, entraram em compasso de espera. Por enquanto, não estão dispostos a pagar apostas elevadas. Caberá ao presidente eleito e à sua equipe a tarefa de romper o clima de dúvida.
Para operar esse pequeno milagre, o desafio de Lula é o equivalente a criar asas e voar. Até para quem pense que não, esse prodígio de voar por cima dos problemas é possível. A convivência com a adversidade terá levado Lula a aprender, desde cedo, a não bater de frente, mas contornar e envolver as questões, numa ordem correta de prioridades, como vem fazendo na sequência de temas que lançou e de países que tem escolhido visitar.
A Argentina é, sim, nossa principal questão externa. A visita de Lula, mesmo sem desdobramentos imediatos e visíveis, arma o cenário da cooperação, que tampouco será possível sem o concurso moral e político do Chile, segundo país a ser visitado.
Agora, Lula está nos EUA. O papel secundário da América do Sul no rol das prioridades do governo de George W. Bush é mais do que evidente. Mas é com essa "secundaridade" que Lula terá de operar.
Há caminhos e caminhos na Washington da atualidade. Um deles é o do confronto aberto ou velado a esse poder centrípeto, o que decerto atrairia a Lula uma notória prioridade negativa na agenda de Bush. Mas quem ganharia o que com tal descaminho? A outra trilha, difícil, mas imaginativa, põe Lula em destaque positivo como alternativa de liderança regional num espaço geográfico não menor do que a própria América do Sul.
Uma ação solidária ao nível dos países do sul do continente americano é o tipo de "problema" que o Brasil quer e precisa absorver para si, a fim de não se manter preso à estreita agenda de suas dificuldades domésticas, isto é, inflação, dívida, desemprego, arrecadação etc. A nova fronteira do discurso político brasileiro deve transcender, sempre com realismo, os limites da agenda nacional. Claramente, um exemplo é o "default" argentino, cuja resolução interessa ao Brasil, uma vez que o contágio afeta sobremaneira o custo da dívida brasileira. Mais do que isso. Para crescer mais, a economia brasileira precisa revigorar a demanda pelo aumento das trocas regionais. Além disso, a economia brasileira pode se alavancar na captação da grande liquidez mundial que deve ser liberada pela recessão mundial.
Não obstante, muito mais pode ser feito no âmbito das conversações que levarão à Alca. A expansão do comércio, em princípio entendida no sentido norte-sul, em que o grande pólo seriam os Estados Unidos, pode ser compreendida também com a potenciação sul-sul, desde que as infra-estruturas compatíveis se façam presentes. Uma adequada engenharia financeira poderia bem transformar as dificuldades atuais, como o "default" argentino e a diminuição de fluxos de investimentos diretos, em alternativas de solução para o financiamento da infra-estrutura de portos, estradas, rede elétrica, infovias que comporão o aparato de apoio ao comércio na América do Sul e entre esta e a América do Norte. A Iirsa (Iniciativa para a Infra-Estrutura Regional Sul-Americana) reúne mais de 160 projetos financiáveis, se os recursos se tornarem disponíveis. As habilidades de negociação do novo presidente serão postas à prova, no limite, desde o começo de sua gestão.
Criar asas e transcender aos problemas domésticos para abraçar uma causa regional parece ser a missão de um Lula adaptado à magnitude do que enfrentará. Uma ação solidária no nível regional poderá exigir, por seu lado, ainda mais responsabilidade fiscal de quem lidera esse processo. Um Brasil líder regional não poderá fazer má figura na administração pública interna. O país terá que virar exemplo na gestão da sua moeda e do orçamento público. Para isso, requer-se um prévio encontro de contas do setor governo para desafogar a dívida pública interna. Mas essa já é outra conversa...


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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paulo@rcconsultores.com.br


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