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OPINIÃO ECONÔMICA
Apartheid global
GESNER OLIVEIRA
A globalização não garantiu uma das liberdades
básicas do ser humano: a de ir e
vir e a de fixar residência e trabalhar onde bem entender no planeta. A força de trabalho mundial tem cerca de 3 bilhões de trabalhadores. Dois bilhões se encontram em regiões relativamente menos desenvolvidas e percebem salários que não chegam à
metade dos rendimentos em países ricos. A despeito de todo o
avanço tecnológico e da redução
dos custos de transporte, uma
grande parcela está proibida de
tentar a sorte em países avançados.
É curioso que esse tema não
chame mais atenção. Estava presente no discurso sobre o estado
da União proferido pelo presidente George W. Bush, mas não
ganhou destaque. Atento à sua
base de apoio hispânica, Bush
prometeu enviar projeto de visto
temporário para imigrantes.
A questão do trabalho imigrante não empolga reformistas nem
revolucionários. Foi uma questão
lateral no Fórum Econômico
Mundial de Davos. Foi ignorada
no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. A economia política
dessa omissão é clara. O populismo de direita instiga a discriminação racial. A esquerda cede demais ao corporativismo sindical.
Nem se a Portela tivesse brilhado a sua luz neste Carnaval a
questão do trabalho imigrante teria ganho a avenida. O samba-enredo da escola cantou as oito
teses do milênio das Nações Unidas, mas a ONU não teve tempo
de incluir a livre movimentação
da mão-de-obra. Os trabalhadores ficaram para trás, com a velha
guarda da Portela.
Uma inspeção pelos principais
livros-texto de economia internacional revela o mesmo descaso
pelo assunto. Muitas páginas são
dedicadas à livre circulação de
mercadorias e serviços e à mobilidade do capital. Pouco se discute
sobre a mobilidade do trabalhador.
A economia internacional é
uma matéria fascinante. É possível demonstrar matematicamente que a livre circulação das mercadorias iguala não apenas os
preços dos produtos mas também
a remuneração dos fatores (capital e trabalho) utilizados em sua
produção. Mas, entre outros ruídos, as mercadorias não circulam
livremente, como aprenderam às
duras penas os países em desenvolvimento que não têm acesso
aos mercados desenvolvidos.
A proposta de Bush de visto
temporário para os imigrantes é
tímida. Mas provavelmente melhor do que a que seria feita por
Kerry se os democratas tivessem
vencido as eleições. No entanto
não resolve o problema e está longe da promessa de terra da liberdade e da oportunidade que os
Estados Unidos chegaram a representar na virada do século 19
para o século 20.
A política de vistos temporários
adotada em vários países europeus atenua o ciclo econômico
nos países centrais ao permitir
maior ingresso de trabalhadores
durante a expansão e estabelecer
restrição na fase de desaquecimento da economia. Porém a essa estabilização do mercado de
trabalho nos países desenvolvidos
corresponde uma desestabilização nos países exportadores de
mão-de-obra. Esses últimos sofrem com o excedente de mão-de-obra e a contração do mercado
externo em razão do desaquecimento das economias centrais.
A questão dos trabalhadores
imigrantes importa mais para o
Brasil do que o Haiti, uma posição no Conselho de Segurança da
ONU ou um programa genérico
contra a fome no mundo patrocinado por celebridades. Segundo o
IBGE, há cerca de 1,9 milhão de
brasileiros morando em situação
legal em 30 países, 42% do total
nos EUA. Estima-se que, se forem
incluídos os ilegais, o número total poderia facilmente chegar a
2,5 milhões.
A importância econômica desse
fenômeno é óbvia. Em uma estimativa conservadora, as remessas de residentes fora do país somam cerca de US$ 3 bilhões,
quantia comparável à da receita
de exportação com papel e celulose (US$ 2,9 bilhões) ou calçados e
couro (US$ 3,3 bilhões). As comunidades brasileiras no exterior representam mercados naturais
para serviços de empresas nacionais e constituem plataformas de
penetração em novas regiões.
Os trabalhadores que emigram
aumentam, ainda que a duras
penas, seu capital humano. O inglês preterido nos exames do Itamaraty e mal ensinado nas escolas brasileiras pode ser ativo precioso para muitos jovens carentes
de oportunidades no Brasil.
Seria ingênuo imaginar que os
Estados nacionais vão simplesmente abrir as fronteiras aos trabalhadores do mundo. Isso nunca
aconteceu na história da humanidade, embora a circulação de
pessoas fosse mais livre até a Primeira Guerra Mundial. Mas o
princípio da livre circulação dos
trabalhadores deveria ser fortalecido e sujeito a regulação inteligente. Por exemplo, um mercado
de direitos de permanência pode
ser desenvolvido e viabilizar programas de capacitação e recolocação de mão-de-obra.
A expansão de blocos como a
UE (União Européia) e a Alca
(Área de Livre Comércio das
Américas) vai acelerar o processo
nas próximas décadas. A contínua revolução tecnológica continuará integrando a economia
mundial. Dá para acreditar em
um mundo sem tantas barreiras.
"Quem viver verá", reza o samba
da Portela.
Gesner Oliveira, 48, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia
(Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br
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