São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2005

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OPINIÃO ECONÔMICA

Apartheid global

GESNER OLIVEIRA

A globalização não garantiu uma das liberdades básicas do ser humano: a de ir e vir e a de fixar residência e trabalhar onde bem entender no planeta. A força de trabalho mundial tem cerca de 3 bilhões de trabalhadores. Dois bilhões se encontram em regiões relativamente menos desenvolvidas e percebem salários que não chegam à metade dos rendimentos em países ricos. A despeito de todo o avanço tecnológico e da redução dos custos de transporte, uma grande parcela está proibida de tentar a sorte em países avançados.
É curioso que esse tema não chame mais atenção. Estava presente no discurso sobre o estado da União proferido pelo presidente George W. Bush, mas não ganhou destaque. Atento à sua base de apoio hispânica, Bush prometeu enviar projeto de visto temporário para imigrantes.
A questão do trabalho imigrante não empolga reformistas nem revolucionários. Foi uma questão lateral no Fórum Econômico Mundial de Davos. Foi ignorada no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. A economia política dessa omissão é clara. O populismo de direita instiga a discriminação racial. A esquerda cede demais ao corporativismo sindical.
Nem se a Portela tivesse brilhado a sua luz neste Carnaval a questão do trabalho imigrante teria ganho a avenida. O samba-enredo da escola cantou as oito teses do milênio das Nações Unidas, mas a ONU não teve tempo de incluir a livre movimentação da mão-de-obra. Os trabalhadores ficaram para trás, com a velha guarda da Portela.
Uma inspeção pelos principais livros-texto de economia internacional revela o mesmo descaso pelo assunto. Muitas páginas são dedicadas à livre circulação de mercadorias e serviços e à mobilidade do capital. Pouco se discute sobre a mobilidade do trabalhador.
A economia internacional é uma matéria fascinante. É possível demonstrar matematicamente que a livre circulação das mercadorias iguala não apenas os preços dos produtos mas também a remuneração dos fatores (capital e trabalho) utilizados em sua produção. Mas, entre outros ruídos, as mercadorias não circulam livremente, como aprenderam às duras penas os países em desenvolvimento que não têm acesso aos mercados desenvolvidos.
A proposta de Bush de visto temporário para os imigrantes é tímida. Mas provavelmente melhor do que a que seria feita por Kerry se os democratas tivessem vencido as eleições. No entanto não resolve o problema e está longe da promessa de terra da liberdade e da oportunidade que os Estados Unidos chegaram a representar na virada do século 19 para o século 20.
A política de vistos temporários adotada em vários países europeus atenua o ciclo econômico nos países centrais ao permitir maior ingresso de trabalhadores durante a expansão e estabelecer restrição na fase de desaquecimento da economia. Porém a essa estabilização do mercado de trabalho nos países desenvolvidos corresponde uma desestabilização nos países exportadores de mão-de-obra. Esses últimos sofrem com o excedente de mão-de-obra e a contração do mercado externo em razão do desaquecimento das economias centrais.
A questão dos trabalhadores imigrantes importa mais para o Brasil do que o Haiti, uma posição no Conselho de Segurança da ONU ou um programa genérico contra a fome no mundo patrocinado por celebridades. Segundo o IBGE, há cerca de 1,9 milhão de brasileiros morando em situação legal em 30 países, 42% do total nos EUA. Estima-se que, se forem incluídos os ilegais, o número total poderia facilmente chegar a 2,5 milhões.
A importância econômica desse fenômeno é óbvia. Em uma estimativa conservadora, as remessas de residentes fora do país somam cerca de US$ 3 bilhões, quantia comparável à da receita de exportação com papel e celulose (US$ 2,9 bilhões) ou calçados e couro (US$ 3,3 bilhões). As comunidades brasileiras no exterior representam mercados naturais para serviços de empresas nacionais e constituem plataformas de penetração em novas regiões.
Os trabalhadores que emigram aumentam, ainda que a duras penas, seu capital humano. O inglês preterido nos exames do Itamaraty e mal ensinado nas escolas brasileiras pode ser ativo precioso para muitos jovens carentes de oportunidades no Brasil.
Seria ingênuo imaginar que os Estados nacionais vão simplesmente abrir as fronteiras aos trabalhadores do mundo. Isso nunca aconteceu na história da humanidade, embora a circulação de pessoas fosse mais livre até a Primeira Guerra Mundial. Mas o princípio da livre circulação dos trabalhadores deveria ser fortalecido e sujeito a regulação inteligente. Por exemplo, um mercado de direitos de permanência pode ser desenvolvido e viabilizar programas de capacitação e recolocação de mão-de-obra.
A expansão de blocos como a UE (União Européia) e a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) vai acelerar o processo nas próximas décadas. A contínua revolução tecnológica continuará integrando a economia mundial. Dá para acreditar em um mundo sem tantas barreiras. "Quem viver verá", reza o samba da Portela.


Gesner Oliveira, 48, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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