São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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LUÍS NASSIF

Os guetos musicais de São Paulo

Amigos , eu vi. Com olhos que enxergam e ouvidos que ouvem fui a uma casa em Santo Amaro, de onde se via ao longe Interlagos. Uma atmosfera mágica, uma névoa musical envolvia os presentes, como que os transportando para outra dimensão.
Vi quando a pianista Dudah se dirigiu ao piano, como uma daquelas pianeiras históricas, dos tempos de Chiquinha Gonzaga, e despejou uma mistura de choro e ragtime capaz de levantar paciente de UTI. E vi quando o conjunto Flor Amorosa entoou um vocal tão bonito como eu não ouvia desde o início do Quarteto em Cy. Em seguida, ouvi uma jovem cantora de nome Adriana Godoy tirando da garganta sons de que apenas Elis Regina seria capaz.
Noite avançando, as visitas dirigiram-se ao salão principal como uma procissão de iluminados aguardando a celebração final. Abriu-se o piano, e vi quando Marinho Boffa passou a dedilhar escalas, arpejos e acordes de uma riqueza que teria humilhado os músicos do Blue Note. E vi quando Laércio de Freitas, a quem Radamés chamava de gênio, levantou-se lentamente, qual um príncipe etíope, empurrou Boffa para o lado agudo do teclado e passou a martelar os graves como jamais ouvi em nenhum CD pretérito, presente ou futuro. A batida vinha num sincopado complexo, uma harmonia com nuances a quatro mãos, com tais desdobramentos que se diria que a música estava sendo reinventada.
Saí daquela casa e fui a um restaurante de Santo Amaro onde Miltinho Tachinha tirava de sua guitarrinha sons e improvisos que não envergonhariam Garoto. João Torto bordava no cavaquinho harmonias à altura de Canhoto, e o violão sete cordas de João Macacão soltava bordões da melhor escola brasileira.
Dormi em êxtase, acordei no domingo, almocei e voltei ao caminho de Santiago dos guetos musicais de São Paulo. Fui parar num sobrado modesto da Pompéia. Lá vi os consagrados trompete de Silvério e trombone de Zé da Velha acompanhados pelo sete cordas imbatível de Zé Barbeiro e de Israel. Vi quando rapazes entraram na roda, abriram partituras e saíram lendo e improvisando de um modo que as velhas gerações não tinham por hábito fazer. Ouvi a gaita de Vitor, a flauta de Rodrigo, o cavaquinho de Pingo, como tinha ouvido antes o bandolim de Danilo e, antes dele, os múltiplos instrumentos de Arnaldinho, todos quase rapazes, quase meninos.
À noite, em casa, recebi Cabelo, um músico curitibano de 50 anos, filho de boiadeiro. E Cabelo tirou sons de viola caipira e de violão, dedilhou Barrios e Beatles, pontos de viola e de choro, com um virtuosismo de gênio rústico.
Aí trabalhei intensamente durante cinco dias para me preparar para o final de semana seguinte. No sábado retomei a trilha de São Pixinguinha e fui dar em uma casa na remota Vila São José, que tinha ao fundo um salão enorme, com 40 pessoas reunidas silenciosamente, como membros de confraria, celebrando a música de Izaias, de um madrigal montado com pessoas do bairro. E ouvi uma menina linda, noiva do maestro, com uma voz que lembrava Bidu Sayão.
Depois, segui para Brasília e fui parar no Clube do Choro e na Escola de Música Raphael Rabello, onde o bandolinista Reco constrói sua obra monumental. E vi violonistas exímios, bandolinistas virtuoses ensinando a sua arte para uma molecada inebriada pelos sons e pela magia do choro.
Nos próximos fins de semana estarei garimpando novos guetos, para encontrar o bandolim de João Macambira, os pianos de Benjamin Taubkin e Silvinha Góes, os violões de Swami Jr. e Chico Pinheiro, os sopros de Proveta, Pitoco e Mané Silveira, os baixos de Pixinga, Arismar do Espírito Santo e de seu filho. E tantos outros, mas tantos outros que eu, que peguei o final da bossa nova e a fase dos festivais, aderi ao tropicalismo e fui devoto do Clube da Esquina, que acompanhei os sons do sertão e dos salões, segui o rastro dos violeiros e dos violonistas, vi ano após ano as transformações musicais do país, ousaria dizer: jamais houve geração musicalmente mais rica, em quantidade e qualidade, do que a atual, formada ou se formando nos guetos musicais, longe das gravadoras, das emissoras de rádio e televisão.
E ai de quem me disser que a música popular brasileira está decadente.

E-mail - lnassif@uol.com.br



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