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São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 2003

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LUÍS NASSIF

A avó de Cortázar

Em sua última edição, a revista "Carta Capital" entra em tema fundamental para entender a política econômica dos anos 90: o que vem a ser o tal do "mercado", quais os interesses que estão por detrás desse jogo que praticamente matou as possibilidades de crescimento da economia brasileira na década de 90 e, talvez, na atual. O que leva pessoas aparentemente preparadas a cometer toda sorte de sofismas defendendo modelos que comprovadamente falharam?
Não se interprete o "mercado" simplesmente como sendo o sistema bancário. Este é mais amplo, tem a parte comercial, a parte de financiamento ao consumo, de capital de giro. Nem chega a ser a indústria de fundos, que pode se dar bem com vários tipos de ativos.
O "mercado" se resume à tesouraria dos bancos comerciais e respectivos departamentos econômicos, aos bancos de investimentos, aos respectivos departamentos econômicos, aos consultores contratados, todos eles solidários em torno de um tipo de operação cujo superdimensionamento é claramente uma distorção: a arbitragem entre juros e câmbio.
É de longe o setor mais lucrativo da economia. Nem de longe é economicamente relevante. Só existe no tamanho atual por conta de distorções do modelo econômico. Só que a distorção ganhou vida própria, juntando em torno de si grupos de interesse bastante definidos. Às vezes lembra um conto clássico de Julio Cortázar, no qual morre a avó, a família não quer admitir e vai criando uma ficção em torno do episódio, até que a história ganha vida própria.
Tudo começou com essa nova geração dos economistas de planilha, uma rapaziada que estudou nos Estados Unidos nos anos 80 e voltou com muita matemática e escassa formação histórica, sociológica e humanista, a parte mais relevante, aliás, da formação de um formulador da políticas públicas.
Como dizia José Alexandre Scheinkman, se prepararam para ganhar dinheiro dentro de um modelo. E nada mais que isso. A questão é que, por falta de discernimento de parte da mídia, foram alçados à condição de opinadores de políticas públicas. E aí a economia degringolou.
Valeria a pena um sociólogo de peso estudar a fundo esses processos. Essa rapaziada se tornou respeitada por dominar fórmulas e modelitos. Prepararam-se a vida inteira para isso, para atuar em mercados voláteis. Quando o modelo vai ficando disfuncional, quando os resultados apregoados não batem com os resultados reais, há duas saídas: admitir o erro do modelo ou procurar perpetuá-lo como a avó do conto de Cortázar.
É isso o que está ocorrendo de maneira extraordinariamente repetitiva. O câmbio valoriza e as exportações murcham. O economista dirá que o problema foi o alto crescimento (?) da economia no período 94-98 que comeu as exportações. O câmbio desvaloriza, as exportações explodem. Ele dirá que foram as empresas que se prepararam adequadamente e descobriram o caminho da China.
E como é difícil derrubar o sofisma montado na base de slogan nessa cultura que Sérgio Buarque de Hollanda tão bem descreveu.

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