São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
O fim do ócio

RUBENS RICUPERO

Lembram-se de quando era moda para economistas como Galbraith prever que no fim do século não saberíamos o que fazer com o tempo livre? Pois bem, estudo recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) acaba de revelar que os americanos trabalham quase 2.000 horas por ano! O pior (ou melhor, a depender do ponto de vista) é que o número de horas de trabalho anuais por pessoa não cessa de aumentar, tendo saltado de 1.883, em 80, para 1.942, em 90, e 1.996, em 97.
A tendência já havia sido detectada pela economista de Harvard Juliet B. Schor, que publicou no início da década "The Overworked American", com o subtítulo "The Unexpected Decline of Leisure", ou "O Americano Sobrecarregado de Trabalho - O Inesperado Declínio do Ócio". O livro observava que, após ter diminuído gradualmente até 39 horas, a semana de trabalho tinha começado a crescer de novo. Na época da publicação, o trabalhador médio já estava trabalhando 164 horas extras por ano, o equivalente a um mês adicional. O curioso é que isso ocorreu justamente quando a família em que marido e mulher trabalham estava se tornando a norma da classe média e o desemprego era expressivo.
Conforme sugere o subtítulo, o encolhimento do tempo livre foi inteiramente inesperado, pois veio inverter tendência para a redução da semana de trabalho que datava da reação dos sindicatos à exploração do capitalismo selvagem da Revolução Industrial, quando se chegava a trabalhar 70 e até 80 horas semanais.
Quais teriam sido as causas dessa surpreendente inversão de expectativas? Segundo a autora, haveria três principais: 1ª) a própria natureza do capitalismo; 2ª) o eclipse do movimento sindical; 3ª) a estagnação do nível de vida a partir de 1973.
Não se falava ainda de globalização quando a pesquisa foi publicada. Por isso, a economista se refere simplesmente à lógica do mercado, que é esticar as horas de trabalho ao máximo, até o ponto em que o governo ou os sindicatos intervêm. Para o empregador, é melhor dispor de prolongada semana de trabalho com pouca gente do que ter de contratar número maior de trabalhadores com tudo o que isso significa em termos de treinamento, custos adicionais, não só com salários, mas Previdência, e toda a parafernália de taxas e contribuições que oneram a folha.
O desdobramento natural da primeira causa nos conduz à segunda. Se o único fator limitativo da tendência ao aumento é a oposição do governo e dos sindicatos, segue-se que a desregulamentação da economia a partir de Reagan e o enfraquecimento sindical deixam o campo livre aos patrões. A prova é que, na Europa, onde os governos e sindicatos não desarmaram, caminha-se para a semana de 35 horas (já é lei na França) e para quatro até seis semanas de férias (em contraste com as férias americanas de duas semanas).
O terceiro motivo é que, durante duas décadas, os salários médios e o nível de vida se mantiveram estagnados (só começaram a melhorar recentemente). O resultado é que as pessoas tinham de trabalhar mais horas a fim de não sofrer deterioração do estilo de vida, "correr para ficar parado".
É interessante que a evolução americana contrasta com a japonesa, que indica decréscimo de 2.121 horas, em 80, para 2.031, em 90, e 1.889, em 95 (último dado disponível). Quem diria, alguns anos atrás, que os americanos superariam em horas de trabalho os aparentemente imbatíveis nipônicos?
O contraste ainda é maior com a Europa, onde, em 97, na Noruega se trabalhavam 1.399 horas e, na Suécia, 1.552. Na França, em 96, eram 1.656 e, na Alemanha, 1.560, nesse mesmo ano.
A questão toda é saber quem antecipa o futuro, a tendência ascendente nos EUA ou a declinante na Europa e no Japão? Até que ponto esse é um dos fatores que explicam o melhor desempenho da economia americana? Será uma das consequências inelutáveis da globalização (que exacerba a concorrência), um dos indícios confirmando que os EUA completaram antes que os demais uma transformação estrutural que os outros terão de imitar? Ou, como já sucedeu no passado, trata-se de fenômeno passageiro que pode ser invertido pelo governo e pelos sindicatos?
São perguntas relevantes, pois a redução da semana de trabalho sempre foi vista como parte do esforço para humanizar a economia e melhorar a qualidade de vida. Se as pessoas forem condenadas a dispor cada vez de menos tempo livre para dedicar aos filhos, ao aperfeiçoamento pelo estudo, à recreação, às artes, às atividades religiosas e comunitárias, que tipo de mundo iremos criar?
Ainda se pudéssemos encontrar consolo na idéia de que o ser humano se realiza no trabalho (e no amor, não esqueçamos), vá lá, teríamos ao menos 50%. Mas será que é desse trabalho atual que estamos falando ou de um outro, menos embrutecedor, menos alienante? Quantos poderão aspirar de verdade a um trabalho criativo, realizador, que se faz com prazer?
Os americanos inventaram a palavra "workaholic", mas foi também um americano que declarou: "Se o trabalho duro fosse tão maravilhoso como dizem, os ricos teriam reservado tudo para si, não deixando nada para os outros". Ou, se preferirem, como comentário mais adequado a esse admirável mundo novo em que, em lugar de trabalhar para viver, se viverá para trabalhar, esta frase de André Breton no "Manifesto do Surrealismo":
"De nada vale estar vivo se somos obrigados a trabalhar".


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.

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