São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 2009

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CESAR BENJAMIN

A mercadoria fictícia


O conhecimento, sendo intangível, não pode ser aprisionado nas relações de propriedade tradicionais


DEPOIS DE tratados internacionais sobre patentes (Paris, 1883) e propriedade intelectual (Berna, 1886) que perduraram por mais de cem anos, os acordos da década de 1990, que os sucederam, apesar de tão jovens, já enfrentam problemas crescentes. Claudia Antunes publicou nesta Folha reportagem sobre os abusos da nova proteção patentária e os protestos que se avolumam. A questão tem sido tratada em âmbito jurídico, mas não é esse o aspecto que me interessa mais.
Os tratados originais, que organizaram as legislações nacionais durante quase todo o século 20, definiram três princípios fundamentais:
a) as patentes visavam a beneficiar tanto o inventor como a sociedade. Em troca da concessão de um monopólio temporário, cada Estado podia exigir a descrição completa da invenção e sua produção local. Afinal, soava insensato conceder um monopólio de algo que não fora descrito; e ninguém devia deter exclusividade em um país onde não pretendia aplicar a sua invenção;
b) os Estados podiam se negar a conceder patentes no caso de produtos considerados essenciais ou estratégicos, sendo vedado apenas tratamento discriminatório contra estrangeiros: se os cidadãos nacionais tivessem direito a certo tipo de patente, os estrangeiros também deveriam ter, nas mesmas condições;
c) o inventor que recebesse uma patente em um país signatário dos tratados teria prazo de um ano para registrá-la nos demais países de seu interesse; a invenção cairia em domínio público nos países não procurados. Ninguém cogitava a ideia de que os Estados devessem conceder monopólios que não haviam sido sequer solicitados.
A mudança da década de 1990, forçada pelos EUA, alterou as bases conceituais da questão de modo a favorecer empresas desejosas de garantir mercados cativos em escala global, mas sem difundir informação tecnológica. As salvaguardas das sociedades caíram, e os direitos privados foram muito ampliados. Privilegiou-se o segredo dos negócios, tornou-se obscura a fronteira essencial entre invenção e descoberta, e, com a genética e as biotecnologias, chegou-se ao limiar do patenteamento da vida.
Muito se pode debater sobre isso. Destaco uma questão de interesse teórico. Em 1944, Karl Polanyi escreveu que o processo de mercantilização do mundo continha uma fissura insuperável: a força de trabalho era uma "mercadoria fictícia", pois o capital jamais controlaria as condições de sua produção, que é a própria "produção" de seres humanos. Polanyi estava errado, pois a formação de um exército industrial de reserva desassocia oferta de força de trabalho, de um lado, e crescimento da população, de outro, transferindo ao capital controle pleno sobre a produção daquela mercadoria, que por isso não é fictícia.
Mas o conceito permanece fecundo. Creio que a força produtiva mais importante do século 21 -o conhecimento- é uma mercadoria fictícia. Ao ser usado, logo ele se desvela. Sendo intangível, não pode ser aprisionado nas relações de propriedade tradicionais. As tentativas de controle fracassam, uma a uma, exigindo crescentes esforços de restrição, legislações mais complexas e meios de vigilância e punição. Tudo isso termina por atrapalhar o desenvolvimento da ciência e a própria capacidade de inovação, que se beneficiam da troca de informações.
As tentativas de aprisionar o conhecimento, na forma de mercadoria, fracassarão. Talvez essa venha a ser a fissura que Polanyi anteviu. A história segue seu curso, sempre nos surpreendendo.

CESAR BENJAMIN, 55, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.

cesarben@uol.com.br



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