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A orgia dos zeros
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Não foi o Brasil que inventou a inflação. Na Europa,
no período após a Primeira Guerra, as moedas sofreram enorme
desvalorização. Exemplo clássico
é o da Alemanha onde, entre janeiro de 1919 e novembro de 1923,
a inflação atingiu a marca de
1.000.000.000.000%. Um trilhão
por cento é, convenhamos, uma
verdadeira orgia de zeros. Que
enlouquecia todo mundo: as pessoas saíam para as compras levando o dinheiro em carrinho de
mão e compravam qualquer coisa, porque qualquer coisa era melhor do que uma moeda que não
valia nada. O dinheiro era inclusive queimado nas lareiras para
manter o aquecimento das casas
durante o rigoroso inverno europeu. A desestabilização política e
social que se seguiu pavimentou o
caminho para a ascensão do nazismo, com todas as suas conseqüências.
Nosso país não chegou a esses
extremos, mas, depois que a mentalidade inflacionária foi incorporada à administração pública e à
atividade econômica, a desvalorização da moeda foi num crescendo, a famosa espiral. Um marco
para isso foi o governo Juscelino
Kubitschek, os "cinqüenta anos
em cinco". Eleito presidente em
1955, JK logo se deu conta de que
não poderia financiar seus ambiciosos projetos sem imprimir dinheiro. O que, diga-se de passagem, ele fez sem muitos problemas; sabia que para a opinião pública o importante eram as obras,
as realizações. No começo de sua
gestão a inflação anual era de 24%
ao ano; ele a elevou até os 40%, o
que era um recorde, mas não abalava seu otimismo: acreditava que
Jânio Quadros, seu sucessor, trataria de conter as taxas inflacionárias mediante o arrocho econômico, fazendo com que os brasileiros
sentissem saudades dos bons
tempos de otimismo. De certo
modo tinha razão: uma cultura
inflacionária se criou então e minha geração, que a viveu intensamente, é testemunha disso.
O que significa uma cultura inflacionária? Significa, em primeiro lugar, que o dinheiro perde sua
importância, tanto em termos financeiros como simbólicos. O
dólar americano surgiu no século
19 e, apesar da inflação, que também existe nos Estados Unidos,
ainda é um símbolo de valor, um
padrão mundial. No Brasil, o dinheiro ia perdendo sua importância rapidamente; não se chegava a
queimar notas para aquecimento
(mesmo porque estamos em um
país tropical) mas nas sarjetas das
ruas de Porto Alegre a gente encontrava moedas que as pessoas
deixavam cair ou jogavam fora
-não valia a pena juntá-las. Pior
que a desvalorização da moeda
era o fracasso dos diferentes planos que tentavam contê-la. Cada
um introduzia a sua nova moeda:
cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro
(outro cruzeiro), cruzado, cruzado novo, cruzeiro (de novo), cruzeiro real... Não raro as pessoas
esqueciam o nome do dinheiro; a
expressão "contos de réis" era (e
ainda é) usada embora tivesse
perdido o sentido em 1942, quando deu lugar ao cruzeiro.
Como na Alemanha, a consciência da desvalorização do dinheiro estimulava as compras e
fez crescer a economia. Mas também propiciou o surgimento de
manobras astutas. Se você devia
dinheiro para um amigo e dizia
"eu lhe pago amanhã", provavelmente receberia um olhar rancoroso. Porque o atraso de um único dia podia representar um prejuízo. A inflação trabalhava a favor dos devedores e contra os credores, mesmo com a correção
monetária. Dever era ótimo, emprestar era péssimo.
Procurava-se então investir, e
numa época isto era feito através
das aplicações em "overnight",
que teoricamente eram por um
dia; a pessoa recebia o salário e
corria para o banco. O dólar também era um recurso e na Faculdade de Medicina tive um colega
que ganhou muito dinheiro movido por uma simples obsessão:
tudo o que ganhava, desde a mesada dos pais até pagamento de
plantões, era trocado por dólar,
que guardava em casa.
O resultado disso foi uma infantilização do país. A economia
transformou-se numa coisa lúdica, semelhante àquele jogo das cadeiras: a música vai tocando e
quando pára (isto é, quando surgia um plano), os espertos sentam, os bobos ficam de pé. Era
uma ilusão, um castelo de cartas.
Os remédios antiinflacionários
certamente são ruins, e ainda estamos atrás de uma boa fórmula
nesse sentido, mas só pode dizer
que a inflação é boa quem não viveu a orgia dos zeros.
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