São Paulo, sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

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A orgia dos zeros

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Não foi o Brasil que inventou a inflação. Na Europa, no período após a Primeira Guerra, as moedas sofreram enorme desvalorização. Exemplo clássico é o da Alemanha onde, entre janeiro de 1919 e novembro de 1923, a inflação atingiu a marca de 1.000.000.000.000%. Um trilhão por cento é, convenhamos, uma verdadeira orgia de zeros. Que enlouquecia todo mundo: as pessoas saíam para as compras levando o dinheiro em carrinho de mão e compravam qualquer coisa, porque qualquer coisa era melhor do que uma moeda que não valia nada. O dinheiro era inclusive queimado nas lareiras para manter o aquecimento das casas durante o rigoroso inverno europeu. A desestabilização política e social que se seguiu pavimentou o caminho para a ascensão do nazismo, com todas as suas conseqüências.
Nosso país não chegou a esses extremos, mas, depois que a mentalidade inflacionária foi incorporada à administração pública e à atividade econômica, a desvalorização da moeda foi num crescendo, a famosa espiral. Um marco para isso foi o governo Juscelino Kubitschek, os "cinqüenta anos em cinco". Eleito presidente em 1955, JK logo se deu conta de que não poderia financiar seus ambiciosos projetos sem imprimir dinheiro. O que, diga-se de passagem, ele fez sem muitos problemas; sabia que para a opinião pública o importante eram as obras, as realizações. No começo de sua gestão a inflação anual era de 24% ao ano; ele a elevou até os 40%, o que era um recorde, mas não abalava seu otimismo: acreditava que Jânio Quadros, seu sucessor, trataria de conter as taxas inflacionárias mediante o arrocho econômico, fazendo com que os brasileiros sentissem saudades dos bons tempos de otimismo. De certo modo tinha razão: uma cultura inflacionária se criou então e minha geração, que a viveu intensamente, é testemunha disso.
O que significa uma cultura inflacionária? Significa, em primeiro lugar, que o dinheiro perde sua importância, tanto em termos financeiros como simbólicos. O dólar americano surgiu no século 19 e, apesar da inflação, que também existe nos Estados Unidos, ainda é um símbolo de valor, um padrão mundial. No Brasil, o dinheiro ia perdendo sua importância rapidamente; não se chegava a queimar notas para aquecimento (mesmo porque estamos em um país tropical) mas nas sarjetas das ruas de Porto Alegre a gente encontrava moedas que as pessoas deixavam cair ou jogavam fora -não valia a pena juntá-las. Pior que a desvalorização da moeda era o fracasso dos diferentes planos que tentavam contê-la. Cada um introduzia a sua nova moeda: cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro (outro cruzeiro), cruzado, cruzado novo, cruzeiro (de novo), cruzeiro real... Não raro as pessoas esqueciam o nome do dinheiro; a expressão "contos de réis" era (e ainda é) usada embora tivesse perdido o sentido em 1942, quando deu lugar ao cruzeiro.
Como na Alemanha, a consciência da desvalorização do dinheiro estimulava as compras e fez crescer a economia. Mas também propiciou o surgimento de manobras astutas. Se você devia dinheiro para um amigo e dizia "eu lhe pago amanhã", provavelmente receberia um olhar rancoroso. Porque o atraso de um único dia podia representar um prejuízo. A inflação trabalhava a favor dos devedores e contra os credores, mesmo com a correção monetária. Dever era ótimo, emprestar era péssimo.
Procurava-se então investir, e numa época isto era feito através das aplicações em "overnight", que teoricamente eram por um dia; a pessoa recebia o salário e corria para o banco. O dólar também era um recurso e na Faculdade de Medicina tive um colega que ganhou muito dinheiro movido por uma simples obsessão: tudo o que ganhava, desde a mesada dos pais até pagamento de plantões, era trocado por dólar, que guardava em casa.
O resultado disso foi uma infantilização do país. A economia transformou-se numa coisa lúdica, semelhante àquele jogo das cadeiras: a música vai tocando e quando pára (isto é, quando surgia um plano), os espertos sentam, os bobos ficam de pé. Era uma ilusão, um castelo de cartas. Os remédios antiinflacionários certamente são ruins, e ainda estamos atrás de uma boa fórmula nesse sentido, mas só pode dizer que a inflação é boa quem não viveu a orgia dos zeros.


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