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OPINIÃO ECONÔMICA
Agricultores bandidos e supermercados heróis
ALOYSIO BIONDI
Se o leitor acha poética a "vida
no campo", poderia ter viajado
até São João da Boa Vista, a
pouco mais de 200 quilômetros
da capital paulista, no último
dia 27 de fevereiro, um sábado.
Céu limpo, muito verde, passarinhos piando, essas maravilhas
todas, o leitor teria ainda a
oportunidade de ver um leilão
de caríssimas vacas holandesas,
campeãs em produtividade de
leite.
Se o leitor tivesse pensado, porém, que iria participar de uma
reunião festiva, sofreria forte
decepção. Era um leilão-enterro, de liquidação de todo o "rebanho" da fazenda e abandono
da produção de leite. Mais um
leilão-enterro, de uma série que
vem pipocando no interior do
Estado de São Paulo e de todo o
Brasil, porque os preços recebidos pelos produtores não cobram seus custos. Dão prejuízo.
O leitor sabe que é obrigado a
pagar R$ 1,20 por litro de leite
longa vida ou de R$ 8 a R$ 9 por
um quilo de queijo nos supermercados. Quanto o leitor-com-pendores-bucólicos pensa que o
produtor recebe das indústrias,
que utilizam o leite como matéria-prima? De 13 centavos a 20
centavos, quando o produtor
entrega a quantidade combinada em contrato, chamada "cota". Se aumentar a produção?
Aí, o produtor é punido: recebe
apenas seis centavos pelo volume que "excede" a cota. Isto é,
no supermercado, o leitor pode
pagar um preço que representa
10 (dez) vezes o valor recebido
pelo produtor.
A pecuária leiteira brasileira
está sendo destruída pela conjugação de dois fatores: mercado
controlado por poucas indústrias, com o avanço de multinacionais, e importações - grande parte delas realizada de forma fraudulenta. Como assim?
Conforme denúncias comprovadas de associações de produtores e mesmo indústrias, essas
empresas têm importado leite,
queijos e outros derivados de
seus países, onde são altamente
subsidiados, trazendo-os para
países do Mercosul e depois
"reexportando-os" para o Brasil, livres de impostos ou com
impostos menores.
O salto nas importações nos
últimos anos explica tudo: de
1994 para 1998, a entrada de
produtos lácteos no país cresceu
de 150 mil para 480 mil toneladas, liderada pelo leite longa vida, de 17 mil para 225 mil toneladas, e leite em pó, de 17 mil para 170 mil toneladas. O produtor
nacional está sendo soterrado
por essa avalanche, por mais
que ele adote alta tecnologia, tenha um "rebanho" de altíssimo
nível, produza baratíssimo.
O leitor dúvida? Então vale a
pena saber o nome do proprietário da fazenda de São João da
Boa Vista, que abandonou o setor: Nelson Mancini Nicolau,
ex-secretário da Agricultura de
São Paulo, e cuja família explorava a produção de leite desde
1928, pelas mãos do avô "Chico", chegado da Itália nos idos
de 20. Ah, sim, se o leitor estiver
interessado em participar de algum leilão-enterro, vai haver
outro no próximo dia 13 de março em Vargem Grande do Sul, na
mesma região.
Punição e prêmio
O leite não é exceção. Os agricultores brasileiros têm sido e
estão sendo terrivelmente massacrados por preços baixos e
perda de produção, levando-os
a destruir plantações. Exemplos? Neste exato momento, o
leitor paga pela banana nanica,
nos supermercados, R$ 1 o quilo
(ou, nos dias de "feirão", "sacolão" ou "varejão", na faixa de
R$ 0,70).
O leitor sabe quanto o produtor está recebendo por essa banana, na região paulista do Vale do Ribeira? Não ria: R$ 1,50.
Pela caixa de 18 quilos. Isto é,
menos de dez centavos por quilo. Que o supermercado vende a
R$ 1. Margens de lucro sempre
fartas, em todos os casos, sempre
à custa do produtor, como o preço de apenas 40 centavos o quilo, no Ceagesp, para a uva Itália,
ou 50 centavos o quilo para a
goiaba vermelha, ou, ou, ou...
Com a desvalorização do real,
indústria e sobretudo supermercados resolveram fazer campanhas publicitárias apresentando-se como "defensores do consumidor" e "diques contra a remarcação de preços". Verdadeiros "patriotas", empenhados em
impedir a "volta da inflação".
As cifras desmentem essas mensagens, que apresentam os agricultores como "bandidos gananciosos" e indústrias e supermercados como "heróis nacionais".
A estratégia, em si, já é perniciosa, ao jogar a opinião pública
contra os tão difamados produtores agrícolas, sobre os quais os
meios de comunicação, que vão
às lagrimas com os metalúrgicos
da indústria automobilística,
nada falam -a não ser nos cadernos especializados em agricultura.
O mais grave, porém, é que, ao
se apresentarem como "heróis",
indústria e supermercados pediram ao governo novas vantagens, como a redução ou suspensão de impostos para importar
produtos agrícolas, de produtos
lácteos a óleo de soja. E o governo FHC vai atendê-los, segundo
o noticiário dos últimos dias, de
forma leviana e irresponsável.
Decisões como essa somente
poderiam ser tomadas após cuidadosa análise da margem de
lucro dos supermercados e indústria e, ao mesmo tempo, cuidadosa análise dos custos dos
agricultores, que obviamente
também aumentaram com a
desvalorização do real, que encareceu de adubos e defensivos a
vacinas e rações (aqui, uma pergunta marota: será que os economistas dos gigantescos supermercados e indústrias "se esqueceram" de que os preços da soja
e milho, aqui dentro, acompanham os preços que seriam obtidos na exportação? Quanta amnésia, hem?).
Falando português claro:
quando é que as lideranças rurais vão botar a boca no trombone e exibir o mesmo respeito que
o governo dispensa aos outros
setores produtivos? A agricultura gera renda, consumo, empregos - e dólares, bilhões de dólares. Não pode continuar a ser
enxovalhada.
Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico.
Foi editor de Economia da Folha. Escreve aos
sábados no caderno Dinheiro.
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