São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

Agricultores bandidos e supermercados heróis

ALOYSIO BIONDI

Se o leitor acha poética a "vida no campo", poderia ter viajado até São João da Boa Vista, a pouco mais de 200 quilômetros da capital paulista, no último dia 27 de fevereiro, um sábado. Céu limpo, muito verde, passarinhos piando, essas maravilhas todas, o leitor teria ainda a oportunidade de ver um leilão de caríssimas vacas holandesas, campeãs em produtividade de leite.
Se o leitor tivesse pensado, porém, que iria participar de uma reunião festiva, sofreria forte decepção. Era um leilão-enterro, de liquidação de todo o "rebanho" da fazenda e abandono da produção de leite. Mais um leilão-enterro, de uma série que vem pipocando no interior do Estado de São Paulo e de todo o Brasil, porque os preços recebidos pelos produtores não cobram seus custos. Dão prejuízo.
O leitor sabe que é obrigado a pagar R$ 1,20 por litro de leite longa vida ou de R$ 8 a R$ 9 por um quilo de queijo nos supermercados. Quanto o leitor-com-pendores-bucólicos pensa que o produtor recebe das indústrias, que utilizam o leite como matéria-prima? De 13 centavos a 20 centavos, quando o produtor entrega a quantidade combinada em contrato, chamada "cota". Se aumentar a produção? Aí, o produtor é punido: recebe apenas seis centavos pelo volume que "excede" a cota. Isto é, no supermercado, o leitor pode pagar um preço que representa 10 (dez) vezes o valor recebido pelo produtor.
A pecuária leiteira brasileira está sendo destruída pela conjugação de dois fatores: mercado controlado por poucas indústrias, com o avanço de multinacionais, e importações - grande parte delas realizada de forma fraudulenta. Como assim?
Conforme denúncias comprovadas de associações de produtores e mesmo indústrias, essas empresas têm importado leite, queijos e outros derivados de seus países, onde são altamente subsidiados, trazendo-os para países do Mercosul e depois "reexportando-os" para o Brasil, livres de impostos ou com impostos menores.
O salto nas importações nos últimos anos explica tudo: de 1994 para 1998, a entrada de produtos lácteos no país cresceu de 150 mil para 480 mil toneladas, liderada pelo leite longa vida, de 17 mil para 225 mil toneladas, e leite em pó, de 17 mil para 170 mil toneladas. O produtor nacional está sendo soterrado por essa avalanche, por mais que ele adote alta tecnologia, tenha um "rebanho" de altíssimo nível, produza baratíssimo.
O leitor dúvida? Então vale a pena saber o nome do proprietário da fazenda de São João da Boa Vista, que abandonou o setor: Nelson Mancini Nicolau, ex-secretário da Agricultura de São Paulo, e cuja família explorava a produção de leite desde 1928, pelas mãos do avô "Chico", chegado da Itália nos idos de 20. Ah, sim, se o leitor estiver interessado em participar de algum leilão-enterro, vai haver outro no próximo dia 13 de março em Vargem Grande do Sul, na mesma região.

Punição e prêmio
O leite não é exceção. Os agricultores brasileiros têm sido e estão sendo terrivelmente massacrados por preços baixos e perda de produção, levando-os a destruir plantações. Exemplos? Neste exato momento, o leitor paga pela banana nanica, nos supermercados, R$ 1 o quilo (ou, nos dias de "feirão", "sacolão" ou "varejão", na faixa de R$ 0,70).
O leitor sabe quanto o produtor está recebendo por essa banana, na região paulista do Vale do Ribeira? Não ria: R$ 1,50. Pela caixa de 18 quilos. Isto é, menos de dez centavos por quilo. Que o supermercado vende a R$ 1. Margens de lucro sempre fartas, em todos os casos, sempre à custa do produtor, como o preço de apenas 40 centavos o quilo, no Ceagesp, para a uva Itália, ou 50 centavos o quilo para a goiaba vermelha, ou, ou, ou...
Com a desvalorização do real, indústria e sobretudo supermercados resolveram fazer campanhas publicitárias apresentando-se como "defensores do consumidor" e "diques contra a remarcação de preços". Verdadeiros "patriotas", empenhados em impedir a "volta da inflação". As cifras desmentem essas mensagens, que apresentam os agricultores como "bandidos gananciosos" e indústrias e supermercados como "heróis nacionais". A estratégia, em si, já é perniciosa, ao jogar a opinião pública contra os tão difamados produtores agrícolas, sobre os quais os meios de comunicação, que vão às lagrimas com os metalúrgicos da indústria automobilística, nada falam -a não ser nos cadernos especializados em agricultura.
O mais grave, porém, é que, ao se apresentarem como "heróis", indústria e supermercados pediram ao governo novas vantagens, como a redução ou suspensão de impostos para importar produtos agrícolas, de produtos lácteos a óleo de soja. E o governo FHC vai atendê-los, segundo o noticiário dos últimos dias, de forma leviana e irresponsável.
Decisões como essa somente poderiam ser tomadas após cuidadosa análise da margem de lucro dos supermercados e indústria e, ao mesmo tempo, cuidadosa análise dos custos dos agricultores, que obviamente também aumentaram com a desvalorização do real, que encareceu de adubos e defensivos a vacinas e rações (aqui, uma pergunta marota: será que os economistas dos gigantescos supermercados e indústrias "se esqueceram" de que os preços da soja e milho, aqui dentro, acompanham os preços que seriam obtidos na exportação? Quanta amnésia, hem?).
Falando português claro: quando é que as lideranças rurais vão botar a boca no trombone e exibir o mesmo respeito que o governo dispensa aos outros setores produtivos? A agricultura gera renda, consumo, empregos - e dólares, bilhões de dólares. Não pode continuar a ser enxovalhada.


Aloysio Biondi, 62, é jornalista econômico. Foi editor de Economia da Folha. Escreve aos sábados no caderno Dinheiro.


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