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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A boa causa

RUBENS RICUPERO

O editorial do "The New York Times" qualificou o veto no Conselho de "trapaça política" ("political jockeying") e "banditismo parlamentar" ("parliamentary hold-up"). Só que foi 77 anos atrás, e o veto não era o francês -que não passou de ameaça-, mas o brasileiro. Quem lembra ainda que, em 17 de março de 1926, Afrânio de Melo Franco informava em Genebra ter instruções "irrevogáveis e definitivas" para se opor à entrada da Alemanha como quinto membro permanente do Conselho da Sociedade ou Liga das Nações?
O Brasil era membro temporário, mas a decisão requeria, na época, a unanimidade do Conselho, o que dava a cada um na prática o direito de veto. As razões brasileiras decorriam da aspiração de adquirir o mesmo status permanente, em nome dos princípios de universalidade e equilíbrio da Liga. Por mais justificada e compreensível que fosse, a posição de nosso país batia de frente contra a mais importante iniciativa das grandes potências: a ansiada reconciliação com a Alemanha de Weimar e sua reintrodução consagradora na categoria dos grandes, de que se vira provisoriamente excluída pela derrota de 1918.
Era de certo modo a culminação do processo de liquidação da Primeira Guerra Mundial, iniciado pela Conferência de Paris e o Tratado de Versalhes. Após a terrível fase inicial de fome, levantes socialistas, repressão sangrenta, hiperinflação, esboçava-se, a partir de meados da década de 1920, um aparente retorno à estabilidade e à distensão. Em 1925, pela primeira vez, a produção econômica européia atingiu o nível de 1913. Naquele mesmo ano, na cidade suíça de Locarno, conseguiu-se acordo pelo qual a Alemanha aceitava sem restrições as fronteiras com a França e a Bélgica, que seriam garantidas pelo Reino Unido e a Itália. O historiador inglês A.J.P. Taylor declarou em seu livro "As Origens da Segunda Guerra Mundial" que Locarno havia sido o marco decisivo dos anos de entre-guerras: "Sua assinatura põe fim à Primeira Guerra; seu repúdio, 11 anos mais tarde, marca o prelúdio da Segunda".
O "sistema de Locarno", conforme então se dizia, dependia do cumprimento da promessa de admitir a Alemanha como membro permanente do Conselho. O Brasil, eterno candidato a membro permanente, julgou que tinha igualmente soado sua hora, suscitando o aparecimento de outros aspirantes, os quais, devidamente pressionados, foram, um a um, obrigados a ceder. Menos o Brasil, que persistiu e acabou por ser a causa real ou o bode expiatório do fiasco do planejado triunfo da reconciliação. O episódio foi muito bem estudado na tese do doutoramento genebrino da professora Norma Breda dos Santos, no livro de meu colega Eugênio Vargas Garcia e em obras do prof. Ricardo Seitenfus, fontes de muitas de minhas informações.
Não é tanto a participação brasileira que desejo reter aqui, mas as consequências do veto. O Brasil pagou por ele um preço elevado. Com o pretexto de definir as regras de escolha dos membros temporários, mas na realidade para punir o recalcitrante estraga-festa, excluindo-o do Conselho, constituiu-se comissão a cujo veredicto antecipou-se nosso país, abandonando em junho a Sociedade das Nações. A lição do veto brasileiro não foi esquecida. Anos mais tarde, ao redigir-se a Carta da ONU em San Francisco, o direito de veto foi retirado dos temporários, supostamente menos responsáveis e reservado aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Estes deram mostras cabais de seu senso de "responsabilidade", ao vetar, a torto e a direito, a consideração de tudo o que afetasse seus interesses diretos ou o dos seus protegidos. É devido a isso, ao que o primeiro-ministro Vittorio Emmanuele Orlando chamou de "il sacro egoísmo", que a ONU foi proibida de se ocupar efetivamente das grandes crises da Guerra Fria, da Guerra do Vietnã, do ataque a Suez, da invasão soviética do Afeganistão, da recusa de Israel de cumprir resoluções.
Agora que a crise do Iraque e a ameaça francesa de veto de novo estimulam o interesse de promover o "aggiornamento" da ONU e do Conselho, uma das prioridades deveria ser a reforma profunda do processo decisório. Não só para não estender o veto aos eventuais novos membros permanentes -Alemanha, Japão, Índia, Brasil, entre outros- mas também para introduzir um sistema mais equilibrado e democrático de tomada de decisão, que limite o excesso de unilateralismo discricionário dos "cinco grandes" do Conselho. É esse o caminho para revitalizar a ONU e torná-la incontornável como mecanismo de solução não só para os pequenos mas para os grandes problemas.
Recusar a reforma que daria efetividade à ONU e, ao mesmo tempo, desprezá-la porque essa recusa a condena à irrelevância é repetir a farsa sinistra dos coveiros da Sociedade das Nações. Um desses mestres do cinismo e da hipocrisia descrevia a Liga como "organização acadêmica, sem vida nem importância", acrescentando não crer "nem na possibilidade nem na utilidade da paz perpétua (...), rejeitando o pacifismo, que esconde a fuga diante da luta e a covardia ante o sacrifício (pois) só a guerra leva ao máximo de tensão todas as energias humanas e imprime marca de nobreza aos povos que têm a coragem de afrontá-la".
Outra dessas tristes figuras afirmava que a paz seria "assegurada não pelos ramos de oliveira agitados, com lágrimas nos olhos, por pacifistas chorosos, mas pela espada vitoriosa de um povo de senhores que põe o mundo inteiro a serviço de uma civilização superior".
Soa parecido com o espírito de declarações recentes? O primeiro texto é de um tal de Benito Mussolini, na sua obra-prima "Il Fascismo". O segundo é de Adolf Hitler, em "Mein Kampf". Dir-se-á que hoje é diferente porque o fim -a qualidade da causa- justifica os meios. Ao contemplar, porém, as crianças que ficaram sem braços ou pernas, as mulheres e velhos mais uma vez vítimas dos "danos colaterais", sente-se a tentação de repetir com o poeta austríaco Erich Fried, em "A boa causa":
"Quando vejo
tudo o que é feito
pelo bem da boa causa
então penso às vezes
que seria talvez uma boa cousa
se afinal
não houvesse
mais nenhuma
boa causa".
(tradução de Celeste A. Galeão)


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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