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OPINIÃO ECONÔMICA
Alegria de profeta
RUBENS RICUPERO
Perigosa é a vocação de profeta. Os raros a escapar do
martírio terminam por sucumbir a um de dois perigos. O primeiro é o feio pecado da "Schadenfreude", a
alegria com a realização da
profecia e, portanto, com a
desgraça alheia. O segundo
é a perda de face quando a
profecia não se concretiza
devido a erro de previsão ou
porque as possíveis vítimas
se emendam a tempo de
evitar o raio.
Foi esse o caso do profeta
Jonas. Ele não queria anunciar a destruição de Nínive,
mas Deus não lhe deixou escolha, indo buscá-lo nas entranhas da baleia. Sucedeu
então o inesperado: o rei assírio e seus súditos creram e
fizeram penitência. O Senhor, "que é lento para se
por em cólera, mas rico em
misericórdia", teve pena e
poupou a cidade. Jonas sentiu-se traído e desmoralizado, pedindo a Deus que lhe
tirasse a vida.
Ultimamente as coisas pioraram tanto que correm
mais risco os profetas de bonanças que os de desgraças.
Lembrei aqui o exemplo do
relatório do FMI da primavera de 97, pouco antes da crise asiática, que previa que o
"futuro do mundo seria
cor-de-rosa". Agora meus
arquivos, mais implacáveis
que os de João Condé, desovaram nova pérola. Um recorte do "Financial Times"
de 15 de julho do ano passado, dias após a desvalorização da moeda tailandesa,
continha artigo de um dos
mais, senão o mais respeitável analista do jornal, cujo
nome calo por discrição. O
título em inglês era "No more than a blip" ("Não mais
que um traço"), com o seguinte subtítulo: "A atual
"crise' monetária da Tailândia é uma consequência inevitável do superaquecimento, mas passará rapidamente, assim que os fortes fundamentos da economia voltarem a se firmar".
O jornalista se encontrava
em excelente companhia.
Na reunião do FMI e do Banco Mundial em Hong Kong,
em setembro daquele ano, o
presidente do segundo disse que a crise asiática "não
passava de soluço". O relatório "IMF World Economic
Outlook", apresentado
àquela reunião, previa a
aceleração do crescimento
na Tailândia para 98, sua
manutenção inalterada para
os outros países da região e
um ligeiro aumento do produto mundial. Em dezembro, no Interim Assessment,
o Fundo começou a rever
para baixo as estimativas de
crescimento no mundo e na
Ásia, mas ainda esperava
desempenho positivo na
maioria desses países.
O consenso hoje é que as
economias asiáticas mais
afetadas pela crise, incluindo Malásia, Coréia, Tailândia e Indonésia, sofrerão no
corrente ano uma contração
do produto que irá de menos 4% a menos 12,5%.
Dias atrás, o mesmo analista
citado acima confessava,
após visitar Bancoc, que a
Tailândia permanece mergulhada na escuridão da calamidade econômica.
Mais grave, contudo, é o
que pode acontecer ainda
como resultado da contínua
fraqueza da economia do
Japão, segunda do mundo e
principal credora internacional. O iene, que em 95 tinha atingido a altíssima cotação de 80 por um dólar,
acaba de desabar a quase
144.
Falei disso na semana passada, quando havia esperança de que a reunião do
G-7 produzisse um milagre.
Nada sucedeu; a partir desta semana, o Japão entrou
oficialmente em recessão e
já há quem fale na possibilidade de que a moeda japonesa mergulhe até o fim do
ano às profundezas abissais
de 160, 180 e até mais.
Esse seria um cenário devastador não só para os
asiáticos no olho do tufão,
mas para os mais poupados
até agora, como a China,
Taiwan, Hong Kong e Cingapura.
Nos Estados Unidos, a economia continua robusta,
mas o presidente do FED
voltou a dizer que, se os custos salariais persistirem na
alta, ele seria obrigado a aumentar os juros. Se Greenspan não fez isso até agora é
porque teme, como observou o "Financial Times", que
a medida possa desencadear uma queda na Bolsa,
um enfraquecimento adicional do iene, um agravamento da crise asiática, ou qualquer combinação desses
três efeitos.
Como se vê, se já era arriscado, a partir de julho de 97,
basear a política econômica
na aposta otimista de que o
contexto internacional voltaria a nos ser propício, aferrar-se a essa esperança neste momento passou a ser
francamente temerário.
Não porque necessariamente vá-se produzir uma catástrofe no Japão, na Ásia ou
nos EUA. Simplesmente porque, mesmo que o pior não
se materialize, a mera continuação da incerteza é suficiente para nos manter com
os pés nus sobre brasa ardente.
Os recursos financeiros de
curto prazo são voláteis por
natureza e essa volatilidade
se exacerba com a incerteza.
Como esta não dá sinais de
se dissipar a curto ou médio
prazo, não seria hora de reexaminar a premissa da dependência em alto nível
desses recursos em que se
assenta a estratégia que
vem sendo seguida?
Em janeiro, quando pela última vez estive no Brasil,
participei em São Paulo de
jantar no qual estavam presentes pessoas eminentes
da política, da economia,
dos meios empresariais. A
conversa girava em torno
das eleições. De minha parte, comentei que me interessava mais em saber o que
aconteceria depois delas.
Admitindo-se a hipótese da
reeleição, que parecia então
pacífica, isso facilitaria ou
não a remoção dos obstáculos à aceleração do crescimento a taxas menos medíocres que as atuais? Seria
possível reformular as bases
da política econômica, a fim
de superar a atual camisa-de-força, que leva a um
agravamento das contas externas cada vez que crescemos a mais de 2% ao ano?
Para meu espanto, verifiquei que no fundo as pessoas estavam resignadas a
um crescimento de lesma
por muitos anos, como se os
graves problemas brasileiros fossem compatíveis com
essa lentidão.
Desde então, os tumores começaram a explodir, tornando óbvio que o prolongamento do atual impasse
econômico é implausível.
Não é melhor, portanto, começar a retificar os rumos,
discutir alternativas, explicitar-lhes os custos, comparando-os aos benefícios?
Já se disse que a pior forma
de negação é o adiamento.
É chegado o momento de
enfrentar a verdade. Esse
processo começa, a meu ver,
pela reconstrução gradual
do espaço para afirmar nossa relativa autonomia.
Não podemos continuar a
tolerar que o destino, o
bem-estar, o emprego de
160 milhões de brasileiros,
sobretudo dos mais desprotegidos, sigam em mãos de
especuladores arrogantes e
superficiais, ávidos e pretensiosos donos de uma suposta verdade ortodoxa que
apenas mascara o "gosto da
cobiça e a rudeza duma austera, apagada e vil tristeza".
O ponto de partida é recuperar a autoconfiança, é dizer como Keynes que preferimos "em última análise
qualquer coisa ao que os relatórios financeiros chamam
de "melhor opinião de Wall
Street'".
Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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