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São Paulo, domingo, 13 de julho de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Erros antigos, ilusões modernas

RUBENS RICUPERO

Se o Brasil lograsse triplicar as exportações em sete anos e as elevasse a 30% do PIB, teria certamente resolvido o problema do crescimento econômico, não? E se, ainda por cima, ganhasse das agências de crédito o cobiçado "investment grade", reduzisse a taxa de risco a pouco mais de 200 pontos-base e baixasse a carga tributária a 12% do PIB, um terço da atual, estaríamos no seio de Abraão, certo? Errado, pois o México tem isso tudo e mais, o que não impediu, nas eleições de domingo passado, que os eleitores manifestassem seu desagrado fazendo o partido do governo perder cerca de 50 deputados.
Quase todas essas conquistas -menos a baixa carga tributária, que se deve à receita petrolífera- foram alcançadas na década de 1990, em consequência ou complemento da entrada em vigor do Nafta, um acordo de livre comércio com os EUA semelhante à Alca. Exatamente um mês atrás, com a presença do diretor do FMI e do secretário do Tesouro americano, o México resgatava os últimos "Brady bonds" de um total de US$ 35 bilhões, pondo fim simbolicamente aos 20 anos da crise da dívida externa desencadeada em outubro de 1982. Não obstante progressos reais e admiráveis como esses, que o Brasil está longe de emular, um jornal liberal insuspeito de heterodoxia, o "Financial Times", não hesitava em intitular recente análise da situação mexicana de "a década perdida do México". Como é possível?
O exemplo asteca ilustra a complexidade do fenômeno do desenvolvimento. Ele não se confunde nem mesmo com uma série impressionante de indicadores positivos. Tampouco deve ser reduzido a fórmulas simplistas, panacéias universais como o livre comércio ou o Consenso de Washington. Após o choque de 1982, o México voltou as costas às políticas do passado e resolveu integrar-se ao espaço econômico norte-americano. A opção fazia sentido pois permitia tirar partido da vantagem da localização geográfica, os 3.000 quilômetros de fronteira com os EUA. Capitalizava ademais a excepcional relação política criada pela combinação da contiguidade, a gigantesca comunidade de imigrantes ao norte do rio Grande, o interesse de Washington no suprimento seguro do petróleo, na estabilidade do vizinho meridional.
Funcionou, pois de 1993 a 2000 as exportações saltaram de US$ 51,8 bilhões para US$ 166,4 bilhões, quase tudo fruto do Nafta (em vigor desde 1994), que possibilitou aumentar as vendas ao mercado americano de US$ 42,5 bilhões para US$ 147,6 bilhões. Agravou-se, todavia, a concentração excessiva das exportações (85%) em relação aos EUA, cuja desaceleração arrastou para baixo a economia mexicana e destruiu o sonho do presidente Fox. Além de acentuar a dependência, o Nafta atraiu um tipo de investimento duvidoso cujo caráter de linha de montagem de insumos importados é realçado pelo nome expressivo de "maquiladoras" que lhe deram os mexicanos. O valor agregado, o conteúdo tecnológico adicionado são mínimos. Há exceções, mas o grosso do pequeno valor acrescentado provém da mão-de-obra local.
Ora, os custos desta última não podem competir com os da China, onde a média da hora de trabalho é de US$ 0,27, três ou quatro vezes inferior à mexicana. O resultado é que, de 2000 para cá, 540 maquiladoras se transferiram à China com 200 mil a 300 mil empregos, sobretudo em setores intensivos de mão-de-obra (brinquedos, vestuário). Esse êxodo maciço de empregos alerta para o perigo de tornar o futuro de um país refém da estratégia das empresas transnacionais. O risco é maior quando essa estratégia se baseia na mera montagem de componentes importados, gênero volátil por excelência, incapaz de aportar tecnologia ou capacidade inovadora e tendente a agravar, como vem ocorrendo no México, a polarização entre as zonas fronteiriças de localização das fábricas e a estagnação do restante do território.
Alguns avanços mexicanos merecem respeito. Ninguém pretende negar que o Nafta, a expansão das exportações, o grau de investimento, podem ser fatores valiosos de desenvolvimento. Nenhum deles, porém, nem mesmo o aumento espetacular das exportações, basta para garantir o crescimento acelerado e sustentável. Na década de 1990, o México cresceu em média 3,1% por ano, quase o mesmo que o Brasil (2,9%), que não dispõe de nenhum desses fatores, e bem abaixo do Chile (6,7%).
A China, campeã mundial de crescimento, em via de desbancar o México como segundo fornecedor dos EUA (o primeiro é o Canadá), nunca teve acordo comercial com os americanos, não goza de nenhuma preferência, não era membro do Gatt nem da OMC e, sobretudo, jamais se aventurou na liberalização de sua conta-capital. Conforme escreveu o professor Stiglitz, em alguns aspectos a China fez exatamente o contrário do recomendado pelo Consenso de Washington, ao menos em privatização, liberalização comercial ou desregulamentação da economia, o que não significa que seu modelo seja aplicável a nós, por exemplo.
Se algo nos ensina a China, conclui o "Financial Times", é que se pode reformar a economia sem recorrer à panóplia das ortodoxias de Washington. E, permito-me acrescentar, sobretudo sem repetir, como o Brasil e o México, erros antigos: valorização cambial, dependência financeira excessiva, desigualdade e pobreza (dos 100 milhões de mexicanos, 53 milhões são pobres e 24 milhões são indigentes). Nem se deixar enganar pela ilusão moderna de que, sem direção estratégica do Estado, sem política tecnológica, industrial ou distributiva, os mercados e as transnacionais farão por nós o que fomos incapazes de fazer nós mesmos.


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


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