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OPINIÃO ECONÔMICA
Regatas e maratonas
JOÃO SAYAD
Corredor fundista é especial.
Corre para ganhar de si mesmo.
Se algum companheiro cansa ou
cai, o corredor pára e ajuda.
Vela é diferente. Na regata, o
velejador corre contra o vento,
contra o mar e principalmente
contra os barcos mais próximos.
A regata depende de regras
complicadas de ultrapassagem,
de bordo, de largada. É preciso
gritar "água!" bem alto. Gasta-se muito tempo, entre as provas,
argumentando com a comissão
de regatas. "Fulano me atrapalhou, sicrano atravessou, o barco
de beltrano está mal medido
etc.".
Na corrida de fundo, temos
concorrência. Cada um por si,
Deus por todos.
Na regata, temos rivalidade:
cada um por si e contra os mais
próximos.
Nossos tempos modernos são
apaixonados por concorrência e
por competições. Integração
competitiva, empresa competitiva, indústria competitiva. Se é
competitivo, é bom.
Tudo começou com Adam
Smith, que, segundo nossos contemporâneos, teria demonstrado que, se cada um procurar o
melhor para si mesmo, acabamos obtendo o melhor para todos. Mais tarde, economistas
neoclássicos demonstraram formalmente o teorema e o amor
pela concorrência virou paixão.
Concorrência é a característica dos setores em que existem
muitas empresas, tão pequenas
que nenhuma consegue afetar o
preço.
A agricultura é competitiva, a
feira livre, o vendedor ambulante, o bóia-fria, o mercado de soja
e de café são concorrenciais.
Quanto mais antigo o produto, quanto mais conhecida a tecnologia, maior a concorrência.
A prostituição, a mais antiga
profissão do mundo, é concorrencial.
Em geral, quem trabalha em
setor concorrencial é pobre, ganha mal.
Os países subdesenvolvidos,
sem conhecimento tecnológico,
produzem para mercados onde
existe muita concorrência.
A maratona é competitiva e
acessível a todos: um tênis, calção, camiseta e vontade de correr. Na regata, o veleiro é caro,
as regras, complexas, e a habilidade do "skipper", do navegador e da tripulação, muito importantes.
Rivalidade é concorrência
com inveja. Não quero correr no
limite das minhas forças. Quero
correr mais rápido do que os outros.
A maior parte dos setores econômicos modernos é dominada
pela rivalidade. Uma grande loja de São Paulo, por exemplo,
anuncia todo dia na televisão
que vende biscoitos muito baratos. O garoto-propaganda é um
rapazinho com cara de "yuppie"
de gravata e sem paletó que proclama em alto e bom tom: "Vamos acabar com a concorrência!".
Ato falho, mas significativo.
Qual o interesse do telespectador
na destruição do concorrente da
loja? Queremos biscoitos baratos
e gostosos. Ninguém comprará
biscoitos para "acabar" com o
coitado do concorrente da loja
milionária. É rivalidade, não é
concorrência.
Setores oligopolistas são dominados pela rivalidade. Gastam
dinheirada com propaganda
que não serve para nada. Para
demonstrar que o carro A dá
mais "status" do que o B, que fumar permite saltar de pára-quedas, que voar pela empresa A é
melhor do que voar no mesmo
avião com a mesma cadeira da
empresa B etc.
Empresas rivais iludem o consumidor com produtos apenas
aparentemente diferentes: uma
caixinha mais brilhante, uma
segunda lâmina que corta o que
a primeira lâmina já cortou,
uma lâmpada que brilha mais,
mas queima antes. Rivalidade,
inveja, desperdício de recursos
como os que o governo quer economizar com as reformas.
É difícil justificar a rivalidade.
Organizações humanas -empresas, burocracias, partidos,
governos, países, exércitos- são
dominadas pela rivalidade se
não existir liderança clara, chefia, direção. Todos se acotovelam, concorrem tanto entre si
que muitas vezes esquecem o objetivo da organização.
A sociedade humana tomada
pela rivalidade explode em violência.
É assim na família -Caim,
Édipo, Medéia.
É assim na política -Tiradentes e Silvério dos Reis, d. Pedro e José Bonifácio, Ademar de
Barros e Garcez, Geisel e Figueiredo, PMDB e PSDB, PDS e PFL,
De la Rua e Menem.
A rivalidade se dirige ao mais
próximo, ao parecido, ao pai, ao
irmão, ao conterrâneo, ao correligionário.
A sociedade humana só se organiza se consegue drenar a
energia da inveja para objetivo
externo -religioso, militar, real
ou imaginário, realmente
ameaçador ou simples bode expiatório. A função do líder, do
general e do rei é encontrar esse
objetivo e torná-lo uma paixão.
Sem direção, sem liderança,
sem objetivo que arrebate a nossa energia, dominam a rivalidade, a inveja e a violência. Todos
contra todos.
Talentos e energia se dirigem
para os mais próximos, transformadas em ódio, inveja e rivalidade estéreis. Surgem crises políticas que brotam como as bolhas
assassinas dos mais vulgares filmes de ficção científica.
João Sayad, 53, economista, professor da
Faculdade de Economia e Administração
da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de "Que País é Este?" (editora Revan); escreve às segundas
nesta coluna. E-mail: jsayad@ibm.net
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