São Paulo, Segunda-feira, 13 de Setembro de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA
Regatas e maratonas

JOÃO SAYAD

Corredor fundista é especial. Corre para ganhar de si mesmo. Se algum companheiro cansa ou cai, o corredor pára e ajuda.
Vela é diferente. Na regata, o velejador corre contra o vento, contra o mar e principalmente contra os barcos mais próximos.
A regata depende de regras complicadas de ultrapassagem, de bordo, de largada. É preciso gritar "água!" bem alto. Gasta-se muito tempo, entre as provas, argumentando com a comissão de regatas. "Fulano me atrapalhou, sicrano atravessou, o barco de beltrano está mal medido etc.".
Na corrida de fundo, temos concorrência. Cada um por si, Deus por todos.
Na regata, temos rivalidade: cada um por si e contra os mais próximos.
Nossos tempos modernos são apaixonados por concorrência e por competições. Integração competitiva, empresa competitiva, indústria competitiva. Se é competitivo, é bom.
Tudo começou com Adam Smith, que, segundo nossos contemporâneos, teria demonstrado que, se cada um procurar o melhor para si mesmo, acabamos obtendo o melhor para todos. Mais tarde, economistas neoclássicos demonstraram formalmente o teorema e o amor pela concorrência virou paixão.
Concorrência é a característica dos setores em que existem muitas empresas, tão pequenas que nenhuma consegue afetar o preço.
A agricultura é competitiva, a feira livre, o vendedor ambulante, o bóia-fria, o mercado de soja e de café são concorrenciais.
Quanto mais antigo o produto, quanto mais conhecida a tecnologia, maior a concorrência. A prostituição, a mais antiga profissão do mundo, é concorrencial.
Em geral, quem trabalha em setor concorrencial é pobre, ganha mal.
Os países subdesenvolvidos, sem conhecimento tecnológico, produzem para mercados onde existe muita concorrência.
A maratona é competitiva e acessível a todos: um tênis, calção, camiseta e vontade de correr. Na regata, o veleiro é caro, as regras, complexas, e a habilidade do "skipper", do navegador e da tripulação, muito importantes.
Rivalidade é concorrência com inveja. Não quero correr no limite das minhas forças. Quero correr mais rápido do que os outros.
A maior parte dos setores econômicos modernos é dominada pela rivalidade. Uma grande loja de São Paulo, por exemplo, anuncia todo dia na televisão que vende biscoitos muito baratos. O garoto-propaganda é um rapazinho com cara de "yuppie" de gravata e sem paletó que proclama em alto e bom tom: "Vamos acabar com a concorrência!".
Ato falho, mas significativo. Qual o interesse do telespectador na destruição do concorrente da loja? Queremos biscoitos baratos e gostosos. Ninguém comprará biscoitos para "acabar" com o coitado do concorrente da loja milionária. É rivalidade, não é concorrência.
Setores oligopolistas são dominados pela rivalidade. Gastam dinheirada com propaganda que não serve para nada. Para demonstrar que o carro A dá mais "status" do que o B, que fumar permite saltar de pára-quedas, que voar pela empresa A é melhor do que voar no mesmo avião com a mesma cadeira da empresa B etc.
Empresas rivais iludem o consumidor com produtos apenas aparentemente diferentes: uma caixinha mais brilhante, uma segunda lâmina que corta o que a primeira lâmina já cortou, uma lâmpada que brilha mais, mas queima antes. Rivalidade, inveja, desperdício de recursos como os que o governo quer economizar com as reformas.
É difícil justificar a rivalidade.
Organizações humanas -empresas, burocracias, partidos, governos, países, exércitos- são dominadas pela rivalidade se não existir liderança clara, chefia, direção. Todos se acotovelam, concorrem tanto entre si que muitas vezes esquecem o objetivo da organização.
A sociedade humana tomada pela rivalidade explode em violência.
É assim na família -Caim, Édipo, Medéia.
É assim na política -Tiradentes e Silvério dos Reis, d. Pedro e José Bonifácio, Ademar de Barros e Garcez, Geisel e Figueiredo, PMDB e PSDB, PDS e PFL, De la Rua e Menem.
A rivalidade se dirige ao mais próximo, ao parecido, ao pai, ao irmão, ao conterrâneo, ao correligionário.
A sociedade humana só se organiza se consegue drenar a energia da inveja para objetivo externo -religioso, militar, real ou imaginário, realmente ameaçador ou simples bode expiatório. A função do líder, do general e do rei é encontrar esse objetivo e torná-lo uma paixão.
Sem direção, sem liderança, sem objetivo que arrebate a nossa energia, dominam a rivalidade, a inveja e a violência. Todos contra todos.
Talentos e energia se dirigem para os mais próximos, transformadas em ódio, inveja e rivalidade estéreis. Surgem crises políticas que brotam como as bolhas assassinas dos mais vulgares filmes de ficção científica.


João Sayad, 53, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney); é autor de "Que País é Este?" (editora Revan); escreve às segundas nesta coluna. E-mail: jsayad@ibm.net


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