São Paulo, quarta-feira, 13 de outubro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Evite Vioxx

PAULO RABELLO DE CASTRO

Agora é oficial: o próprio fabricante mandou recolher todo o estoque do terceiro medicamento, sob prescrição, mais vendido no País. A alegação do laboratório foi sucinta, quase monossilábica, mas não deixou margem de dúvida quanto aos sérios e possíveis efeitos colaterais do conhecido antiinflamatório Vioxx sobre os vasos sanguíneos, provocando constrição por seu uso continuado, além de maior agregação de plaquetas propiciadoras de um eventual infarto.
Não obstante ser correta a ação do fabricante, disposto até a restituir aos compradores o valor das 500 mil caixas/mês vendidas só no mercado brasileiro, é cabível supor as contingências supervenientes ao conhecimento público dos malefícios à saúde, muito superiores ao momentâneo alívio da dor, dos pacientes sofrendo de processos inflamatórios aos quais foi administrada a droga por médicos igualmente perplexos.
O que era a última palavra em supressão da dor e outros sintomas até o "dia de ontem", transformou-se (felizmente!) no fim da picada, pelo anúncio de resultados de pesquisa que deixam pouca dúvida sobre a insidiosa ação deletéria da terapêutica que se supunha tão avançada, justamente por inibir a enzima (oxigenase2, segundo a notícia) que age na síntese dos mediadores da dor.
Francamente, não sei se entendi bem a explicação porque não é a minha praia. Mas, em homenagem à cultura médica, estou recitando a lição por considerá-la totalmente aplicável ao mundo econômico brasileiro.
Hoje, nossos médicos da economia nos receitam um vioxx contra a inflamação, quer dizer, contra a inflação, cujo processo parece resistente a outros tratamentos mais convencionais. Esse vioxx, todos sabem muito bem que é o juro administrado pelo Banco Central. A terapêutica é de uso continuado e prolongado. O que diria o laboratório fabricante do juro alto se soubesse que, em determinado país, médicos -diríamos, ousados e agressivos- estivessem administrando esse vioxx há dez anos para toda a população? Desde 1994 o Brasil se entope de antiinflamatório na expectativa de debelar a dor da inflação. Como em qualquer patologia algesia, não se pensa mais em outra coisa, há uma década, senão na própria dor. O doente-país está um trapo, recolhido a episódios curtos de melhoria, quando comemora, eufórico, a esperança de uma recuperação definitiva (como agora!), até a recaída sinistra dos sintomas do seu padecimento crônico. Quem dera pudéssemos pensar em sair, aproveitar a vida, crescer... Não, tudo agora é em razão da soturna visita mensal dos circunspectos cientistas da inflação que modulam a dose do veneno nos seus periódicos colóquios conhecidos como Copom. Semana que vem, tem mais Copom; a inflamação será medida; a dose pode vir a ser reforçada, por questão de "prudência".
Prudentemente, estamos ficando mortos. Há prejuízos indisfarçáveis à saúde do país, a longo prazo, pelo efeito cumulativo total da droga dos juros altos, administrada com a mesma "eficácia" de um vioxx. O diabo é a certeza médica. É ela que não nos faz desconfiar de nada quando, por exemplo, os investimentos do país, especialmente em infra-estrutura, habitação e transporte de longo curso, que requerem confiança em taxas de juros mais baixas "no futuro", regridem ao invés de aumentar, mesmo diante de reiterados anúncios do próximo espetáculo do crescimento. Neste exato momento, os produtores de equipamentos pesados, turbinas de geração elétrica, por exemplo, reclamam da falta de encomendas.
Reuniu-se, na semana passada, para um seminário de alto nível em Washington, um grupo de bambas da economia, entre "officers" do FMI e da academia, banqueiros novos como Stanley Fischer (ex-FMI) e banqueiros tradicionais, além do nosso secretário do Tesouro, entre outros. A notícia me chamou a atenção porque ali se discutiram alguns efeitos colaterais do vioxx, isto é, da nossa terapêutica de juros-veneno.
Entre várias declarações curiosas, típicas de cientistas em aula prática de anatomia, Fischer, com o bisturi na mão, entre uma incisão e outra, ponderava, sisudamente, que o custo do dinheiro no Brasil era, para ele, ainda "um mistério". Era a mesma dúvida, do mesmo jeito, que expressara, em 1974, como jovem professor-assistente numa aula sobre "Moeda" na Universidade de Chicago, encantado como estava com os benefícios da correção monetária brasileira, invenção aparentemente inócua que também permitia ao paciente viver tranqüilo com inflação crescente...
A história se repete. Agora já se sabe que correção monetária é bem pior que vioxx. Mas custamos a aprender e fizemos muitas vítimas até constatar o veneno dentro do remédio.
Assim também, receio eu, caro leitor, custará muitos anos de propensão recessiva da economia brasileira, de estagnação dos investimentos, de inútil e nefasta concentração de renda nas contas bancárias dos rentistas, de destruição de postos de trabalho aos milhões, de abandono prematuro de infra-estrutura, de câncer orçamentário pela explosão da despesa financeira da União, de Estados, municípios e empresas endividadas, tudo por conta da prescrição de uma miserável dose de taxa de juros, apenas alguns pontinhos acima do nível "normal". É uma morte sutil, com falecimento lento e progressivo, uma letalidade opiácea, a tal ponto que quase não nos apercebemos da falência da nossa vontade vital.
Haverá tempo de recolher a droga e iniciar outra terapêutica? Se tivéssemos a cabeça no lugar, decretaríamos em 2005 a moratória do juro alto. E aí observaríamos como se comporta o paciente sem vioxx. Um amigo meu, meses atrás, que ficou péssimo tomando Vioxx, experimentou parar e melhorou. Foi contra a ordem do médico; parou por ignorância e se deu bem.
Tem vezes em que a ignorância é mais sábia que a escolaridade.


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - rabellodecastro@uol.com.br


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