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OPINIÃO ECONÔMICA
Evite Vioxx
PAULO RABELLO DE CASTRO
Agora é oficial: o próprio fabricante mandou recolher
todo o estoque do terceiro medicamento, sob prescrição, mais
vendido no País. A alegação do
laboratório foi sucinta, quase monossilábica, mas não deixou margem de dúvida quanto aos sérios e
possíveis efeitos colaterais do conhecido antiinflamatório Vioxx
sobre os vasos sanguíneos, provocando constrição por seu uso continuado, além de maior agregação de plaquetas propiciadoras de
um eventual infarto.
Não obstante ser correta a ação
do fabricante, disposto até a restituir aos compradores o valor das
500 mil caixas/mês vendidas só
no mercado brasileiro, é cabível
supor as contingências supervenientes ao conhecimento público
dos malefícios à saúde, muito superiores ao momentâneo alívio
da dor, dos pacientes sofrendo de
processos inflamatórios aos quais
foi administrada a droga por médicos igualmente perplexos.
O que era a última palavra em
supressão da dor e outros sintomas até o "dia de ontem", transformou-se (felizmente!) no fim da
picada, pelo anúncio de resultados de pesquisa que deixam pouca dúvida sobre a insidiosa ação
deletéria da terapêutica que se supunha tão avançada, justamente
por inibir a enzima (oxigenase2,
segundo a notícia) que age na síntese dos mediadores da dor.
Francamente, não sei se entendi
bem a explicação porque não é a
minha praia. Mas, em homenagem à cultura médica, estou recitando a lição por considerá-la totalmente aplicável ao mundo econômico brasileiro.
Hoje, nossos médicos da economia nos receitam um vioxx contra a inflamação, quer dizer, contra a inflação, cujo processo parece resistente a outros tratamentos
mais convencionais. Esse vioxx,
todos sabem muito bem que é o
juro administrado pelo Banco
Central. A terapêutica é de uso
continuado e prolongado. O que
diria o laboratório fabricante do
juro alto se soubesse que, em determinado país, médicos -diríamos, ousados e agressivos- estivessem administrando esse vioxx
há dez anos para toda a população? Desde 1994 o Brasil se entope
de antiinflamatório na expectativa de debelar a dor da inflação.
Como em qualquer patologia algesia, não se pensa mais em outra
coisa, há uma década, senão na
própria dor. O doente-país está
um trapo, recolhido a episódios
curtos de melhoria, quando comemora, eufórico, a esperança de
uma recuperação definitiva (como agora!), até a recaída sinistra
dos sintomas do seu padecimento
crônico. Quem dera pudéssemos
pensar em sair, aproveitar a vida,
crescer... Não, tudo agora é em razão da soturna visita mensal dos
circunspectos cientistas da inflação que modulam a dose do veneno nos seus periódicos colóquios
conhecidos como Copom. Semana que vem, tem mais Copom; a
inflamação será medida; a dose
pode vir a ser reforçada, por questão de "prudência".
Prudentemente, estamos ficando mortos. Há prejuízos indisfarçáveis à saúde do país, a longo
prazo, pelo efeito cumulativo total da droga dos juros altos, administrada com a mesma "eficácia"
de um vioxx. O diabo é a certeza
médica. É ela que não nos faz desconfiar de nada quando, por
exemplo, os investimentos do
país, especialmente em infra-estrutura, habitação e transporte de
longo curso, que requerem confiança em taxas de juros mais
baixas "no futuro", regridem ao
invés de aumentar, mesmo diante
de reiterados anúncios do próximo espetáculo do crescimento.
Neste exato momento, os produtores de equipamentos pesados,
turbinas de geração elétrica, por
exemplo, reclamam da falta de
encomendas.
Reuniu-se, na semana passada,
para um seminário de alto nível
em Washington, um grupo de
bambas da economia, entre "officers" do FMI e da academia, banqueiros novos como Stanley Fischer (ex-FMI) e banqueiros tradicionais, além do nosso secretário
do Tesouro, entre outros. A notícia me chamou a atenção porque
ali se discutiram alguns efeitos colaterais do vioxx, isto é, da nossa
terapêutica de juros-veneno.
Entre várias declarações curiosas, típicas de cientistas em aula
prática de anatomia, Fischer,
com o bisturi na mão, entre uma
incisão e outra, ponderava, sisudamente, que o custo do dinheiro
no Brasil era, para ele, ainda "um
mistério". Era a mesma dúvida,
do mesmo jeito, que expressara,
em 1974, como jovem professor-assistente numa aula sobre "Moeda" na Universidade de Chicago,
encantado como estava com os
benefícios da correção monetária
brasileira, invenção aparentemente inócua que também permitia ao paciente viver tranqüilo
com inflação crescente...
A história se repete. Agora já se
sabe que correção monetária é
bem pior que vioxx. Mas custamos a aprender e fizemos muitas
vítimas até constatar o veneno
dentro do remédio.
Assim também, receio eu, caro
leitor, custará muitos anos de
propensão recessiva da economia
brasileira, de estagnação dos investimentos, de inútil e nefasta
concentração de renda nas contas
bancárias dos rentistas, de destruição de postos de trabalho aos
milhões, de abandono prematuro
de infra-estrutura, de câncer orçamentário pela explosão da despesa financeira da União, de Estados, municípios e empresas endividadas, tudo por conta da
prescrição de uma miserável dose
de taxa de juros, apenas alguns
pontinhos acima do nível "normal". É uma morte sutil, com falecimento lento e progressivo,
uma letalidade opiácea, a tal
ponto que quase não nos apercebemos da falência da nossa vontade vital.
Haverá tempo de recolher a
droga e iniciar outra terapêutica?
Se tivéssemos a cabeça no lugar,
decretaríamos em 2005 a moratória do juro alto. E aí observaríamos como se comporta o paciente
sem vioxx. Um amigo meu, meses
atrás, que ficou péssimo tomando
Vioxx, experimentou parar e melhorou. Foi contra a ordem do
médico; parou por ignorância e se
deu bem.
Tem vezes em que a ignorância
é mais sábia que a escolaridade.
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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